Confesso que os primeiros dias foram os mais difíceis. Na condição de diretor-presidente da Doutores da Alegria, junto ao corpo diretor, tomamos decisões complexas que afetaram a vida de nossos trabalhadores e de nossos públicos.
De um dia para o outro, lá pelos idos de março, 47 artistas e 33 profissionais com formações diversas de três cidades se isolaram.
Diante da complexidade e do ineditismo da pandemia do coronavírus, Doutores da Alegria reconheceu a necessidade de se afastar da atividade nos hospitais e evitar a progressão do contágio dentro do SUS. Também fez isso com as demais atividades.
Foram reuniões seguidas de reuniões – todas virtuais – para acalmar e apoiar a equipe e esclarecer que o trabalho seguiria de alguma maneira.
A orientação da diretoria foi a de manter a atenção e a serenidade para a adaptação das atividades planejadas e ter um cuidado especial para que as novas ações estivessem embasadas pelas leituras de contexto e realidade.
A todo instante pensávamos nas equipes hospitalares, que estiveram bravamente na linha de frente contra o vírus. Que salvaram vidas no Hospital do Grajaú, no Hospital Barão de Lucena, no Hospital da Piedade, entre tantos outros.
O que nós podíamos fazer para seguir levando arte como antídoto potente para profissionais de saúde e crianças hospitalizadas?
O Delivery Besteirológico foi a nossa primeira reinvenção. Em poucas semanas, estabelecemos uma rotina de produção e distribuição de vídeos que envolveu diversas equipes. Conseguimos, enfim, entrar nos hospitais sem estar nos hospitais.
A partir desta experiência, criamos outras frentes de atuação que exigiram muito trabalho em equipe, criatividade e aprendizado com o uso de novas tecnologias. Em parceria com hospitais, desenvolvemos o Plantão Besteirológico, em que duplas de palhaços visitam virtualmente pacientes.
Em julho, levamos ao ar uma programação de quase sete horas ao vivo para toda a família – o Festival Miolo Mole.
Mantivemos o Programa de Formação de Palhaço para Jovens e parte das ações da Escola. Criamos também uma agenda de lives com palhaços e convidados, desenvolvemos palestras e adaptamos espetáculos para a internet.
Se me perguntassem, antes da pandemia, se seria possível realizar o trabalho dos Doutores da Alegria a distância, eu certamente seria o primeiro a dizer não. Eu diria que a ação do palhaço é baseada no encontro físico e que, assim como o teatro, se dá pela presença, pelo olho no olho.
Mas, aos quase 30 anos de idade, Doutores da Alegria aprendeu a levar o olho no olho da intervenção presencial para o mundo virtual. O inimaginável, para nós, se tornou realidade.
A atuação coletiva se tornou nossa melhor marca nessas semanas de isolamento. Juntos, nos apoiamos nos momentos de angústia e crise diante das incertezas. Celebramos pequenas vitórias e acolhemos as diferenças. Cuidamos uns dos outros e topamos ressignificar o trabalho.
Por meio da arte e do diálogo, nos fortalecemos e ampliamos o campo de atividade da organização. Tão logo possamos retomar as ações presenciais, acredito que teremos o desafio de incorporar as ações virtuais aos nossos projetos, estabelecendo um novo campo para a arte do palhaço.
Recentemente conseguimos a aprovação do plano anual de 2021 na Lei Federal de Incentivo à Cultura e, com isso, já podemos receber doações de pessoas físicas e jurídicas com foco no ano que vem.
Ainda há muitos proponentes que não conseguiram aprovar seus projetos e isso já diz das dificuldades que o setor cultural deve enfrentar novamente no próximo ano. Fala-se muito que já temos um “apagão na cultura”.
A elaboração deste plano com a previsão das atividades da Doutores da Alegria em um ano repleto de incertezas foi mais um trabalho formidável em equipe.
E apesar das enormes dificuldades e a tristeza que todos sentimos pelo momento em que passa o país, terminamos 2020 com a sensação de que atravessamos o ano com coragem e dignidade, com a consciência que todos se uniram para cumprir a tarefa institucional que rege a organização.
Quero agradecer a cada um desta equipe. À Assembleia de Associados, à equipe técnica e à equipe artística. Muito obrigado. Com equilíbrio e com confiança mútua, aprendemos que o inimaginável é possível.
Boas comemorações de passagem de ano!