O que seria de nós sem as ficções? Sem as fantasias que nos orientam quando tudo escurece? O que seria de nós se não tivéssemos a capacidade de abstração, diante de todo o cansaço?
São coisas que me pergunto quando amanheço e é dia de trabalhar no hospital. Afinal, o que uma palhaça simboliza em meio a uma pandemia estando num hospital?
Quando nascemos, temos apenas a ideia de quem somos referenciados por nossos pais, não há separação. À medida que vamos crescendo, passamos a desenvolver o “eu”. Na nossa sociedade, esse processo vem carregado de ego, daí que tudo que não sou “eu” torna-se estranho.
Começamos com “não fale com estranhos” e, se não cuidarmos, passamos para reprodução de preconceitos, bullyings, exclusões, guerras etc. O outro, estranho a mim, torna-se ameaça.
O que preciso fazer é tornar o mundo o mais próximo ao meu modelo, para que ele me seja menos estranho, para que eu me sinta mais seguro, assim como quando estava no útero da minha mãe.
Fazemos isso nas nossas relações mais íntimas. Nesse processo, descobrimos que não só o outro tem que se aproximar mais do “eu”, como eu mesmo tenho que me tornar o mais próximo do “eu” que projeto. E isso geralmente a partir de referências impostas, desde que somos pequenos, sobre o que é ser bom, belo e bem comportado.
Crescemos referenciados por “eus” e nos distanciamos da nossa natureza, buscamos modelos perversos, vivemos frustrados por não ser quem somos.
O que o palhaço e a palhaça ensinam sobre isso? Quando abrimos o armário e escolhemos a roupa que mais revela nosso volume ou nossa magreza; quando, ao invés de pentearmos o cabelo, o assanhamos ainda mais; e quando o alto torna-se ainda mais alto vestindo-se de alta costura, estamos dizendo: podemos ser quem somos, é seguro ser quem somos e, ao mesmo tempo, estamos dizendo “eu vejo você, e você é importante pra mim”.
O papel dos palhaços, ao meu ver, é o de resgatar o sonho em ambientes onde a realidade nos fez esquecer do quanto precisamos ser afetados pelos outros. Somos mensageiros: é seguro ser quem somos e precisamos uns dos outros.
Faz parte dessa natureza misturar ingredientes como sinceridade e invenção, riso e comoção, elegância e maltrapilho. Exagerando a condição humana e trazendo a capacidade de nos colocarmos no ridículo. Admitimos e espelhamos, aos outros que riem, que aí há beleza e bastante dignidade.
Na pandemia, em que o outro torna-se um ser perigoso, como ficam as relações humanas? O que significa recuperar a inocência em nós mesmos? O que significa, na nossa profissão, esse esforço obstinado em simplesmente oferecer um ponto de vista novo, uma perspectiva diferente da vida, com foco na importância de encontrar, ver e ouvir o outro?
Cada encontro que vivencio nos hospitais como palhaça, agora no formato virtual, aumenta em mim a fé de que chegaremos a uma humanidade em que alegria, leveza e aspectos engraçados da vida serão vistos como a própria engrenagem da vida, em um nível de profunda abertura e aceitação de nós mesmos e do mistério da vida.
Encontrar o outro é nosso propósito, enquanto palhaços e palhaças. Mas o segredo é que nesse processo encontramos a nós mesmos. Agora não mais como seres isolados em busca de um “eu” distante de nós, mas inseridos, lançados à vida com nossas imperfeições, bem diante dos olhos, a nos confirmar: rir é um privilégio de estarmos compartilhando com os outros a graça da vida.