Vez em quando sempre é bom refletir sobre a essência do nosso trabalho. Uma história antiga habita nosso imaginário e faz parte do rol de grandes encontros e momentos que vivenciamos nos hospitais.
O trecho abaixo faz parte do livro “Boas Misturas – A ética da alegria no contexto hospitalar” (Editora Palas Athena – 2003), de Morgana Masetti, seguido de breve consideração da autora. Leia com calma e guarde uns minutinhos depois para pensar sobre o assunto – se quiser deixar um comentário pra gente com seu pensamento, melhor ainda. Vamos compartilhar saberes.
Trata-se de uma história contada pela artista Vera Abbud, a integrante mais antiga dos Doutores da Alegria, ainda em ação como a dra. Emily.
“Quando se aproximava da porta da UTI, depois de cumprir seu trabalho de manhã na enfermaria infantil, a besteirologista dra. Emily viu Maria, a mãe de Denise, uma menina que ficara internada muito anos por causa de um problema renal.
Sabia que seria um encontro difícil… A menina morrera no dia anterior e seu pai, transtornado pela dor, se suicidara ao receber a notícia. Ele e a esposa, de tanto conviver com a equipe do hospital, tinham concentrado seus afetos ali naquele ambiente, dentro da UTI onde a criança era tratada. Tão presentes e íntimos, eles viraram ajudantes de palhaços.
No trajeto que separava uma da outra, a dra. Emily pensava na dor de Maria. Sem tocar no assunto, a mãe informou que precisava falar com o médico. Já tentara contato via interfone, sem sucesso. Pedira, então, para duas enfermeiras e mesmo assim não obteve resposta. A dra. Emily prometeu ajudá-la:
– Eu vou chamar o dr. João.
– Mas você volta – insistiu a mãe – porque eu já pedi para várias pessoas que entraram aí e ninguém me dá retorno.
– Olha, eu vou deixar minha galinha aqui de refém, para provar que eu vou voltar – disse Emily, tirando a ave de plástico de sua “maleta médica”.
Sem saber explicar por que, a dra. Emily sentiu e constatou que o gesto, tão simples e inesperado diante da situação, deixou Maria confiante de seu retorno. Assim, entrou na UTI à procura do dr. João.
Soube que ele estava na sala de descanso e foi até lá. No caminho, pensava no grande carinho que tinha por ele, uma pessoa muito especial, muito ligada a seus pacientes. Ele se envolvia de tal maneira que chegou a adotar uma criança de quem cuidara, abandonada no hospital pela mãe.
Ao chegar à porta do aposento, a Dra. Emily pediu permissão para entrar e o encontrou sentado à mesa, ao lado da bicama, com o semblante de quem está arrasado.
– Dr. João, a mãe da Denise pediu-me para dizer que precisa falar com o senhor.
Ele mal conseguia articular as palavras. Respondeu, com voz triste:
– Mas a criança… ela… morreu.
Dra. Emily compreendeu, naquele exato momento, que ele mesmo ainda estava tentando se apropriar do que tinha acontecido. Mergulhado em sua própria dor, ele não conseguiria olhar para a mãe da pequena paciente. Nem argumentou, apenas se despediu e fez o caminho de volta, pensando em como contaria para Maria o que estava acontecendo. Mas, para sua surpresa, ela já não estava mais ali, fora embora levando a galinha de plástico.
Tempos depois, a dra. Emily a encontrou, pois de vez em quando ela ainda visitava a equipe, com a qual mantinha forte ligação. Maria lhe disse então que, inexplicavelmente, o fato de receber a galinha de plástico como refém fez com que ficasse mais tranquila e decidisse ir embora para casa. Ela sabia o quanto aquela figura era valiosa para a dra. Emily, por ter vivenciado muitas brincadeiras e “rotinas médicas” envolvendo sua filha.
Como pode uma galinha de plástico desempenhar um papel tão importante nessa situação? Parece incrível, aos olhos da razão, que isso possa ocorrer. Qualquer profissional que tentasse responder à necessidade daquela mãe, procuraria um arsenal de palavras (ainda que mentalmente, sem expressá-las) capazes de acalmar um pouco sua dor. Simples ilusão humana. O gesto de deixar algo de grande valor para Emily gerou de imediato um espaço de confiança. É desse ponto de partida que se constrói o trabalho dos Doutores da Alegria.”