Os atendimentos no Procape, no Recife, ainda estavam acontecendo de modo virtual em agosto de 2021. De suas casas, Dra. Muskyta e Dr. Marmelo chegavam a cada leito do hospital pelo tablet, carregados por Marister, nossa parceira de trabalho.
Numa dessas tardes de encontros virtuais, Dra. Muskyta estava pensativa sobre a passagem do tempo. E foi Júlia, suas perguntas e seu bambolê que dispararam muitas ideias sobre o propósito de toda criança (e de todo adulto também, será?): crescer e brincar.
Vem ler essa história completa!
Tempo que se vive junto voa como brincadeira
Esses tempos de agora, que geraram outros tempos internos na gente, me fizeram olhar profundamente para essa passagem das horas, dos dias, dos meses, dos anos, com certa curiosidade. O tempo que antes a gente via voar igual passarinho, quando tudo estava bem, tivemos que aprender a observá-lo numa espera aguda por um amanhã que não sabemos bem como e quando virá.
É como esperar numa estrada deserta, um carro que leve a gente para o futuro. Mas, de tanto ser forçada a esperar, de tanto procurar pensar e aprender com o passar desses tempos sem doer, longe dos hospitais, dos espaços que antes minhas pernas gostavam tanto de ir, minha cabeça cansou e o coração me mostrou ali, diante de mim, as crianças que venho atendendo no formato virtual nos hospitais.
Eu estava no Procape, numa tarde com Dr. Marmelo, sendo levada no tablet pela querida Marister. Estava com saudades de andar por lá e, pela familiaridade com o Procape e com Marister, que nos conduzia, parecia que andávamos mesmo com nossas pernas felizes de antes.
Já no início do trabalho, ela nos contou que conheceríamos uma criança nova, de Rondônia, Julia. Quando chegamos, fomos recepcionados por um par de sorrisos cheios de dentes de Julia e a sua mãe. De cara, se instaura um tempo diferente nessas horas, é como se a vida batesse na porta do peito e dissesse: “pode parar tudo e ir ali”. “Fazer o quê?” – a gente pergunta à vida. E ela responde num pulo: “brincar”. Ai a gente vai, né? Que a gente não é besta! Quer dizer, a gente é besta sim, acho que é por isso que a gente vai.
A besteirologia me ensinou que quanto maior o nível de besteira, maior o aproveitamento da vida. Apesar dessa informação ter fundamento numa grande besteira, é também uma grande ciência.
Com Julia começou um papo sobre voo, aí como Marmelo é avoado mesmo, ele procurou um motivo de se transformar numa borboleta, até que conseguiu. Apareceu com suas lindas asas azuis. Julia, igualzinha a vida, virou para mim e perguntou: “Vai não, Muskyta?”. E eu: “Fazer o quê?”. “Voar!”, ela respondeu. Foi aí que o tempo voou junto,
Com as minhas asas de mosquita, borboleta, passarinha, voei longe.
Depois a gente começou a mostrar o quarto onde a gente estava, porque ela queria ver tudo que estava ao redor. Contei para ela que na mata de frente a minha janela, tinham alguns cágados, já que estou morando num sítio em Gravatá, mas que não dava pra ela ver. E igualzinho ao tempo, que a gente não vê mas sente, ela acreditou sem ver. Não quis continuar com a história sobre cágado, tartaruga, etc., porque a gente sabe que esses bichinhos andam devagar demais e eu tinha pressa para aproveitar, já que a vida e Julia me chamaram para brincar e não é todo dia que a gente entende que a vida é para isso mesmo.
Aí ela foi pegar um bambolê para mostrar para a gente e, enquanto, bamboleava, rodava aquele bambolê na cintura, ela circulava os instantes, e eu fui entendendo que o tempo é redondo, que muita coisa que vai, um dia volta e que o tempo anda sempre se embolando.
Eu via em Julia o propósito de todas as crianças: crescer. A criança sente o tempo passar, marcada pelo seu crescimento, quer seja de tamanho, quer seja de novos aprendizados e isso a torna feliz. Nós crescemos, passamos a ser adultos e já não crescemos mais de tamanho. Onde fica nosso propósito de crescimento? Muitas vezes o deixamos de lado, vamos vivendo no automático desse tempo corrido e esquecemos, com isso, de ser feliz. Aí temos que nos voltar para dentro e esperar que a vida nos chame de volta: “E aí, vamos?”. “Fazer o quê?”, a gente pergunta, e ela sempre vai responder: “Brincar”.
Doutores da Alegria está comemorando 30 anos de existência e isso é mais que o tempo da minha vida inteira. De imaginar que antes de eu nascer, já tinham pessoas fazendo isso que hoje eu faço, é de um grande respeito e privilégio. Esse tempo, que não é nada linear e objetivo, é um tempo circular e poético, de uma construção incessante, artística e em prol da saúde de todos que recebem. É uma grande honra fazer parte desse elenco. Eu só tenho o que comemorar! Para mim são três anos de um aprendizado imenso e intenso sobre a felicidade.
Doutores da Alegria me possibilita investigar uma linguagem que tem como foco a brincadeira e, como falei, quem brinca, cresce, quem cresce, é feliz. A possiblidade de, assim como as crianças, nós adultos, podermos sentir o crescimento por dentro. Agradeço tanto poder vivenciar um projeto que ajuda a lembrar às pessoas o que viemos fazer aqui na vida: brincar.
Dra. Muskyta (Olga Ferrario)