De vez em quando encontramos com alguém que tem medo de palhaço.
N., uma adolescente de 13 anos internada no Hospital M’boi Mirim, tem medo de palhaço. Quando isso acontece, levamos em consideração a coulrofobia (sim, esse é o termo para quem tem um medo irracional de palhaço) e nos afastamos imediatamente.
Em boa parte dos casos, esse afastamento nos impede de interagir com os demais pacientes do quarto. Mas o caso dela foi levemente diferente. Vendo ou intuindo que os demais pacientes estavam, ao contrário dela, atraídos por nossas figuras, N. solucionou momentaneamente a questão escondendo-se inteiramente debaixo das camadas de lençóis e cobertores de sua cama.
Não tivemos, portanto, que abandonar o quarto. Imaginamos que essa tolerância parcial dela em relação à nossa presença abriria caminho para que, em nossa segunda visita, pudéssemos incluí-la em nossa intervenção. Nada feito. Eu e Dr. Pistolinha aplicamos nossa besteirologia em toda a criançada do quarto, menos nela, que novamente parecia melhor acolhida – e protegida – sob as cobertas.
Na terceira visita, algo mudaria. Após nosso bate-papo de “cara limpa” com a equipe de saúde, vimos N. na brinquedoteca, acompanhada de sua mãe e das brinquedistas. Como sempre, ali da porta cumprimentamos a todos, e por todos fomos cumprimentados. Todos nos disseram “bom dia”, inclusive a menina. Será que ela não nos reconheceu?, nos perguntamos.
– Eu sei quem são vocês, disse ela.
– Sabe? E não tem medo?
– Assim de cara limpa, não.
– Podemos entrar, então?
– Claro.
E os quinze minutos seguintes se desenrolaram pacificamente sem que a sombra da fobia de N. pairasse no ar. A adolescente nos explicou que tem medo quando estamos maquiados, mesmo reconhecendo que as maquiagens são mínimas. Ela conseguiu abordar o tema do medo sem constrangimento. Disse que às vezes até ria embaixo das cobertas, mas que era impossível nos encarar como palhaços.
Acontece que aquela visita, de cara limpa na brinquedoteca, aos poucos foi se tornando uma intervenção palhacesca. Mesmo vestidos “à paisana”, nossa interação tornou-se cômica e, a partir das reações da menina e dos demais presentes, nos comportamos como verdadeiros palhaços… Sem maquiagem… Sem nariz vermelho… E sem jaleco branco. Tudo isso foi tacitamente aceito e retribuído por risos e provocações. Saímos com uma sensação de “missão cumprida”, ou ao menos de “missão bem contornada”.
Evidentemente, pensávamos com afinco em como seriam os encontros dali a pouco com a menina agora que já tínhamos quebrado o gelo e, mais do que isso, nos aproximado com certa profundidade de suas fobias. A única diferença é que agora estávamos como palhaços “oficiais”, maquiados e vestidos como tais. Enfim, um detalhe, concordam?
Não sei como vocês imaginam que foi nosso encontro dessa vez. Um encontro entre coulrofóbicos e palhaços. Inusitado? Tenso? Descontraído? Indiferente? Hilário? Bem, não houve encontro.
Assim que ouviu nossas vozes, nossos instrumentos musicais e nossas figuras de palhaço despontando no corredor, N. foi para debaixo das cobertas. Nos perguntamos, com certa decepção, se nosso contato prévio, de cara limpa, de nada tinha adiantado. Certamente adiantou para aquele momento franco e saudável na brinquedoteca. Provavelmente não se estendeu, como imaginávamos em um cenário ideal, para o momento posterior, de palhaço.
Da decepção passamos à resignação e, quem sabe, até mesmo à motivação. Afinal, estamos longe de atuar em cenários ideais. E mais uma vez aprendemos ao constatar que a fobia dos outros, por mais estranha que nos possa parecer, deve ser encarada com respeito e observação apurada. Não estamos tratando de questões racionais, lógicas e previsíveis. A menina nos ensinou isso.
Nosso papel, se não é o de diminuir tal sofrimento, é, ao menos, o de não aumentá-lo. Ficamos longe delas. E de longe pensamos em como somos complexos, todos: ela, nós, você e eu.