Eu poderia falar de perda e dor, mas a experiência com essa família me fez entender que é o amor que escolhe estar junto e que fortalece. Eu poderia falar de vazio, mas vou falar de eco. Eu poderia começar pelo fim, mas prefiro o que está “entre”, prefiro o “meio”. Tenho uma queda pelo presente. Eu poderia falar de coisas tristes, pois ficar doente não é coisa que se queira. Mas vou falar de riso e alegria, porque assim foram nossos encontros.
Lory tinha uns 5 anos. Era “braba” e doce. Fazia bico, mas logo se desmanchava e sorria. Era “chefe” da enfermaria. E nós a obedecíamos. A regra era clara: todo encontro a gente tinha que fazer duelo de rap, eu e Dra. Baju. Ela ficava de juíza/plateia, seu pai fazia o som de base para o improviso, o beatbox, enquanto sua mãe ficava entregue e gargalhando com as bobagens. E não eram poucas, não! Nem a gente se aguentava. Baju me sacaneava nos versos e lá ia eu com minhas rimas sem rumo e minha cara de pau, dançando com “propriedade” e me achando a melhor rapper do Brooklyn.
O que a gente ainda não sabia é que esse casal havia se separado. Eles mesmos contaram. O que para nós foi uma surpresa, pois o nível de parceria e cumplicidade entre eles era coisa bonita de se ver. Não era teatro, não era ensaiado. Era vida real encarada com leveza e maturidade. Lory era o elo entre os dois. Três corações unidos pelo amor!
Outro dia fomos informadas que o quadro dela estava complicado. Chegando à enfermaria, encontramos seu pai, deitado e abraçado com Lory. O clima era denso. Havia partículas de sentimentos pairando no ar. Amor, medo, vazio, vácuo, dor… E já muita saudade! Pedimos permissão para entrar. O pai passeava com os dedos na cabeça da filha. Sua mãe em pé, com as mãos apoiadas na cama. Um misto de serenidade e contemplação. Seus olhos denunciavam toda sua força e toda sua fragilidade. É mesmo paradoxal.
Entramos e, para nossa surpresa, Lory, como se estalasse os dedos, nos tira daquele marasmo de futuro (passatempo de adulto). Com toda a autoridade de uma voz de criança, pediu para que começássemos o duelo. Sem demora, demos início ao primeiro round. E, como se não bastasse, ela soprava nos nossos ouvidos coisas para a gente rimar. “Baju, cara de tatu. Svenza, cheiro de gambá”.
Lá estava ela, presente, sorrindo, dominando tudo. Nesse dia, seu pai não conseguiu fazer a base pro rap e, no meio da brincadeira, saiu de mansinho para “regar o jardim com os olhos”. Saímos com muita vida daquele quarto. Fui pra casa com uma sensação de preenchimento e vazio. De novo paradoxal. Agradeci muito por tanta troca em cada encontro. Pensei nela/neles o dia todo. Na dor de uma possível despedida. O coração apertado. Naquela mesma noite, Lory foi fazer rima no céu.
“Um sorriso no rosto, um aperto no peito
Imposto, imperfeito, tipo encosto, estreito
Banzo, vi tanto por aí
Pranto, de canto chorando, fazendo os outro rir.
Nossas mãos ainda encaixam certo
Peço um anjo que me acompanhe
Em tudo eu via a voz de minha mãe
Em tudo eu via nóis
A sós nesse mundo incerto
Peço um anjo que me acompanhe
Em tudo eu via a voz de minha mãe
Em tudo eu via nóis”.
(Emicida)
Eu poderia falar de perda e dor, mas eles me ensinaram a leveza da presença e do amor.