P é uma menina que conhecemos no mês de abril, tem 7 anos e é uma alegria de menina. Ficou conosco por um mês, veio para tratar de uma larva na sua cabeça. Soubemos pela equipe na transmissão do plantão, nosso famoso cara limpa, que se trata de um caso social, visto que seus pais estão em situação de rua.
Uma vez que se tem essa informação, algumas perguntas surgem nas nossas mentes: será que há uma falta de cuidado para com a criança, ou, há maus-tratos, uma vez que ela está com essa larva na cabeça, a ponto de estar muito infectada?
O que presenciamos durante a internação de P. nessas semanas foi o oposto da falta de zelo. Em todos os momentos que presenciamos, o pai de P. era quem cuidava, zelava e estava a maior parte do tempo ao seu lado. Sempre muito amoroso e atento à demanda de P., ele se divertiu de montão durante as nossas visitas e intervenções. Ria tanto que parecia mais uma criança.
Foi assim: com P. foi amor à primeira vista. Assim que entramos no seu quarto, ela abriu um sorrisão grande, tão grande, que o que nós palhaços e palhaças propúnhamos no seu quarto ela se encantava. No dia em que estávamos nos conhecendo, eu, Dra. Manela, comecei a sapatear num determinado momento do exame de “ultrasom” que estávamos fazendo.
Vou explicar rapidamente o porquê de eu escrever ultrasom com aspas. Nós, palhaços e palhaças, nos utilizamos de alguns exames da medicina para nossos atendimentos. E dissemos para eles que íamos fazer um exame de ultrasom. Mas, na verdade, o que fizemos foi um super, ultra som, no sentido literal da palavra.
P. não entendeu esse trocadilho da palavra, mas o seu pai captou a brincadeira e deu risada. E lá estávamos nós fazendo nosso super ultrassom. De cima da cama, pulando igual um canguru ou um sapinho, P. dançava ao som da sanfona da Dra. Xamanga, do sapateado da Dra Manela e do ganzá do Dr Chabilson.
E foi ela ver de onde vinha o som que saía dos pés de Manela, que P. pulou da cama para mostrar seu sapato . Calçou, e imitou o sapateado da Dra. Manela, dançando do nosso lado, como se fosse uma de nós. E acredito que ela realmente se sentiu uma de nós. Levou a sério a sua dança.
Mas, foi ela perceber que estávamos finalizando a música, que já se antecipava pedindo outra música para Dra Xamanga. E mais outra e mais outra. Até ela perceber que chegaríamos em algum momento no final da interação, e P. ficava bem triste.
Num outro dia da nossa visita, durante a nossa intervenção, ao perceber que estávamos nos dirigindo para o final da nossa interação, P. pulou da cama, se colocou na frente da porta e abriu os braços no batente da porta proibindo a nossa saída do quarto.
Depois de muitas negociações com a ajuda do seu pai, conseguimos sair. Na porta demos um pouco mais de atenção a P., explicando que tínhamos outras crianças para visitar. Seu pai nos ajudou, mostrando para P. as outras crianças no corredor que estavam à nossa espera.
P. tentou ao máximo reverter a situação, insistindo para que ficássemos, mas ao ver que não tinha mais jeito de nos convencer, se entristecia. Num outro dia, após a nossa interação, na saída P. nos falou:
– Vocês não precisam ir nos outros quartos, as outras crianças não precisam.
Passei alguns dias pensando e refletindo sobre essa frase de P.
– Vocês não precisam ir nos outros quartos, as outras crianças não precisam.
O que fez ela pensar isso? Seria a resposta que ela queria a nossa presença no momento em que íamos embora.
Quis refletir, e resolvi pensar se existe essa possibilidade de uma hierarquia de atendimento para nós palhaços e palhaças.
Qual criança precisaria mais das nossas visitas? Como mediríamos isso? Por onde começaríamos? Quais seriam os parâmetros?
E você , por onde você começaria se estivesse em nosso lugar? Já parou para pensar?
Seriam as crianças com maior grau de gravidade da doença que teriam prioridade? Ou seriam as crianças com longa permanência de internação? Ou, seriam os casos sociais.
Paro a digitação. Não vou enumerar os casos acima. Toda essa lista acima vivenciamos numa manhã de atendimento aqui no Hospital do Mandaqui. E então, como responder essa pergunta que P. lançou? Tenho uma possível resposta.
Para você, P. querida. Nessas quatro semanas que você esteve aqui no Hospital, você esteve muito disponível para nos receber. E sua família também.
É possível que a disponibilidade seja a primeira coisa a ser vista por nós palhaços e palhaças para se ter um atendimento prioritário nessa suposta hierarquia criada neste relatório por mim.
Soubemos da sua condição de hoje, de estar em situação de rua. Pudemos ver e imagino como foi bom esse tratamento recebido aqui. Ter comida, uma cama com lençol limpo, estar sob cuidados, ter água, ter banho, ter banheiro, ter médico, ter enfermeira, ter auxiliar de limpeza, ter psicólogo e até ter palhaços e palhaças para você .
Com certeza, agora entendo quando se colocou na frente da porta, não deixando que isso fugisse de você. No seu lugar, eu faria a mesma coisa.
Agora você teve alta . Agora você poderia estar em sua casa…
Não , não fiquei feliz que você teve alta. Você não está na sua casa, nesse momento em que eu escrevo, estou na minha.
Você e mais de 103 mil pessoas estão em situação de rua no estado de São Paulo, conforme apontam dados de novembro de 2023 do Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), plataforma do governo federal que concentra informações sobre pessoas de baixa renda e em vulnerabilidade. Por esse mês é só. Obrigada pela leitura, um beijo.