Todos os meses contamos causos que permeiam o universo da Besteirologia, nosso dia a dia no hospital, encontros e desencontros que vivenciamos nos corredores, enfermarias e UTIs. Dessa vez, gostaríamos de compartilhar o momento anterior, o antes, o instante que antecede a Besteirologia. Ou seja, o artista que está por trás daquela que é a menor máscara do mundo: o nariz do palhaço.
Gostaríamos de compartilhar nossa vivência do “antes” por acreditar que todos temos diversos papéis e nem sempre pensamos na pessoa que está ali por trás, sua história, seus sentimentos, sua vida. Esse pensamento ocorreu ao chegar ao hospital, e eu (Dr. Micolino), ainda sem assumir meu papel besteirológico – apenas uma pessoa comum chegando para realizar o seu trabalho, depois de enfrentar um trânsito nada simpático e de batalhar por uma vaga de estacionamento – pensava que o dia estava apenas começando.
Eu me dirigia ao hall de entrada do Hospital da Restauração quando me deparei com uma mãe que segurava seu bebê no colo. Um bebezinho lindo! E foi numa fração de segundos que meu olhar cruzou com o olhar do bebê e, como um imã, não paramos mais de olhar um para o outro. Por um instante pensei: “natural, eu sou um palhaço que trabalho com crianças e, bem…”, mas eu estava de cara limpa, nenhuma caracterização que me identificasse com o trabalho que estavas prestes a iniciar. Continuei andando e a troca de olhar não desgrudou.
A mãe percebeu e comentou:
– Que engraçado, ele ficou olhando…
A essa altura eu já havia diminuído o ritmo da minha caminhada, pois eu queria mesmo era prolongar aquele instante, tinha uma cumplicidade no olhar daquele bebê, era como se ele percebesse em mim aquilo que de fato sou: um palhaço. Eu me senti verdadeiramente tocado por aquela troca de olhares. Ao voltar meu olhar para a direção que seguia, me deparei com uma técnica de Enfermagem que vinha no sentido oposto ao meu, e ela também percebeu aquela cena. Na verdade acho que muitas pessoas perceberam! E ela então, sorrindo, me disse:
– Até vestido assim as crianças te olham!
Pois é, até vestido assim! Enquanto o elevador subia, não parei de pensar no que tinha acontecido ali, naqueles longos segundos, “Até vestido assim…”, pensando em quantas pessoas passam por ali, e eu, justo eu, chamei a atenção de uma criança, que sabemos é quem mais sabe olhar verdadeiramente para as pessoas. É como se fosse um raio X, elas enxergam a verdadeira essência de quem somos, e “Até vestido assim…” aquele bebê foi capaz de ver quem realmente sou. Nesse dia trabalhei com um sentimento de orgulho muito grande por ser quem sou… Um palhaço!
Dr. Micolino e Dra Mary En (Marcelino Dias e Enne Marx)
Hospital da Restauração – Recife