Já ouvi de uma pessoa cega, que nunca enxergou antes, que imaginava o céu igual a uma rede de pescador com estrelas. E que todos os planetas presos à rede, inclusive o vento, também tinham cor.
Ouvi, também, que as árvores são cabos de vassouras gigantes com perucas volumosas. Que os passarinhos são a voz do céu, sem forma, nem cor; que vacas são do tamanho de um ônibus e que elefantes são muralhas que andam.
O sol que eu vejo, não é o mesmo sol que Yonara vê. Ela tem aproximadamente 7 anos, é uma criança cega, branca, com cabelos pretos na altura do ombro, sempre presos. Ela tá sempre de short jeans, com uma camiseta ou de pijama. O mundo dela não é a noite escura que a gente imagina.
– Oi, Yonara. Eu sou o Marmelo. Meu cabelo é bem chocante!
– Chocante?
– Todo apontado para o céu.
– Seu cabelo toca no céu? –
Hummm… quase! Pode pegar! – fui até o leito da criança e ela encostou a mão no meu cabelo, senti que ela estranhou.
– Tenho duas bolinhas pretas na testa, e meu nariz é redondo. Igual a um tomate. Se quiser tocar, pode tocar. A criança ergue a mão e toca no meu nariz.
– É vermelho igual a melancia desenhada na sua roupa. E estou com uma camisa amarela de bolas pretas, minha cintura bate no meu peito e minha calça é marrom – continuei me descrevendo.
– Como é a cor marrom?
– É uma cor que lembra terra, barro, as casas dos passarinhos são marrons…
– Tá mais pra cocô, Dr. Marmelo. – resmunga a Dra. Nana. Yonara sorri e diz: – Eca!
– E meu sapato cabe você dentro.
– Nossa, seu pé é grande, Marmelo. E quem está com você?
– É a Dra. Nana, minha colega besteirologista.
– Tô aqui, do seu ladinho, Yonara! Sou linda, linda, linda! Pronto, já me descrevi.
– Ah, não, Dra. Nana, pode começar a dizer tim tim por tim tim da sua roupa e da sua pessoinha igual eu fiz. – fui logo dizendo pra minha parceira.
– Bom, sou uma doutora chique, de pele clara, com cabelos castanhos curtos e cacheados, metade presos, com uma flor amarela na frente. Meu vestido é laranja ofuscante com bolas roxas, tem um laço na frente e o comprimento é até o joelho, visto uma meia-calça roxa que combina lindamente com as bolas do vestido, um sapato preto com fivela dourada e um jaleco branco por cima da roupa. Uso dois relógios como anéis desde que a “psiucóloga” disse que eu precisava de mais tempo para mim. Uso uma máscara amarela que também tem sua combinação perfeita com o colar de bolas e os brincos amarelo-gema-de-ovo-cozido.
– Yonara, podemos cantar uma música que fizemos para você agorinha?
– Pode!
“Yonara Yonara Yonara Yonara…”
Essa música é cantada no ritmo de “Diana”, de Carlos Gonzaga, com uma pequena alteração na letra que só leva o nome de Yonara repetidamente.
Yonara quis tocar o ovinho, instrumento percussivo que a Dra. Nana toca. Então, a doutora passou o álcool em gel no instrumento antes de entregar à criança, mas isso não agradou muito Yonara.
A mãe foi logo esclarecendo a cara feia ao sentir a sensação fria e pegajosa do álcool. Cuidamos de conferir se mãe e filha tinham decorado a primeira parte da letra e continuamos para a segunda parte da música, que, para surpresa das duas, mantinha a mesma sequência:
“Yonara Yonara Yonara Yonara…”
Desde o nosso primeiro encontro com Yonara, fazemos questão de descrever nossas roupas e dançar para ela, pedindo que ela coloque sua mão na cintura da Dra. Nana – a bailarina da dupla – para que sinta o gingado da besteirologista.
Yonara sempre ri nesse momento e confere se a mãe está filmando tudo para que ela relembre depois. Yonara é uma menina de certezas. Ela vê o seu mundo e também o descreve pra gente com muita precisão, ela se autodescreve contando com detalhes a sua roupa e sua casa, por exemplo. Revira os olhos com as nossas bobagens, manda e desmanda na dupla de palhaços:
– Toca aquela música… faz isso… faz aquilo…
E a gente? Ah, a gente obedece!
Dra. Nana (Ana Flávia) e Dr. Marmelo (Marcelo Oliveira)
Ownnm, o sorriso brota no meu rosto, com um relato desse😍😍😍
E um sorriso brota no nosso rosto, lendo um comentário como o seu 😍