Era dia de circo e era também o dia de representatividade preta no Plateias Hospitalares com a apresentação do espetáculo O Menor Picadeiro do Mundo. No checklist do palhaço Funil, as últimas marcações de palco para os números de mágicas, acrobacias, malabarismos. O cenário cheio de cor e os objetos do mundo de um palhaço também estavam aprovados. Tudo pronto!
Mas, a partir do instante em que a plateia chegou e se acomodou nas poltronas do auditório do Hospital Municipal da Piedade, na Zona Norte do estado do Rio de Janeiro, o caos se estabeleceu!
Téo e Igor*, dois meninos pretos, gêmeos, de aproximadamente 7 anos, em pleno gozo de suas habilidades físicas para correr, pular e amplificar as suas cordas vocais, animavam a plateia com frases que só às crianças são permitidas dentro de um “tempo teatral hospitalar”:
– Começa, palhaço!
– Vamos, palhaço, tá demorando!
– Cadê você, palhaçooooo?
E assim começou a apresentação. Em cinco minutos, o espetáculo ganhou dois novos integrantes. Enquanto Téo corria por todo o palco, tentava tocar sanfona e tirava os brinquedos que só existem em uma mala de palhaço, Igor fazia a plateia hospitalar dar gargalhadas com suas perguntas: se o palhaço estava se sentindo bem, se o palhaço poderia repetir o número circense, se o palhaço poderia ensinar a ele como fazer mágicas, se, se e mais ses…
Preciso confessar que, como produtor, foi apavorante assistir a tudo saindo do “controle”.
Mas a palhaçaria se aproveita do inusitado e do improviso para ganhar ainda mais potência. E o espetáculo aconteceu…
O Palhaço Funil, coitado, estava de calças arriadas. Mas não teve medo de encarar o inesperado e atuou com seus novos colegas de cena em um espetáculo inédito, que só terminou quando os meninos agradeceram ao público e receberam suas palmas.
Depois daquele dia, o roteiro original do espetáculo certamente foi alterado. Eu me atrevo a dizer também que a experiência serviu ainda para que o palhaço Funil contribuísse para uma construção identitária positiva sobre si mesmo e seus pares.
Aquelas crianças produziram cultura a partir da bagagem que possuem – muito influenciadas pelas famílias que os acolheram, pelos territórios em que vivem e pela etnia – e no convívio com as outras crianças.
Senti potência preta e representatividade quando aquelas crianças pretas subiram ao palco em que o ator protagonista era um dos seus. Mesmo que o palhaço fosse branco, acredito que haveria a participação eufórica dos gêmeos, mas naquele espetáculo com um palhaço negro, era diferente. Havia identificação.
Era evidente que o potencial daquela apresentação teatral, numa perspectiva afroreferenciada para a educação das relações étnico-raciais, compreendia a criança como agente histórico-social, sujeito produtor de cultura, por meio de suas lógicas próprias.
Téo e Igor, tão crianças, têm um histórico longo de negação, violência e abandono familiar, agravado em seus prontuários pela anemia falciforme e pela desnutrição, adquirida em condições desfavoráveis. É uma condição comum a muitas outras crianças afrocentradas e pobres do Brasil.
As duas crianças, pretas e gêmeas, brincavam de protagonizar suas histórias. De serem protagonistas sem pedir por favor, como tem que ser. Exerciam o direito de toda criança: brincar.
* os nomes das crianças são fictícios