O que se espera de um texto escrito pelo diretor-presidente de uma associação cujo principal programa é promover intervenções artísticas de palhaços em hospitais públicos? Talvez, que use este espaço para falar sobre a importância da alegria e da humanização nos ambientes adversos como as unidades de saúde espalhadas pelo país.
Sim, esse texto também é sobre isso, sobre a nossa volta ao trabalho presencial e o impacto disso para as relações dentro dos hospitais. Mas a verdade é que sinto que antes precisamos falar sobre a morte. Sobre o luto coletivo que se abateu sobre o Brasil.
Contabilizamos mais de 644 mil mortos hoje, segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022. Ao longo dos meses, é como se esses números tivessem perdido a capacidade de nos afetar. Não, não são só números: são histórias.
Como sociedade, damos pouca importância à vida, como se fossemos capazes de escolher quem pode sucumbir à própria sorte ou, ao menos, não nos importássemos com essa escolha. Como se ela fosse aleatória!
Mas, para o palhaço, não há ninguém dispensável. Costumamos dizer que temos a menor plateia do mundo, um espectador por vez. No máximo dois ou três. A criança no leito de hospital, seu acompanhante e o profissional de saúde. E cada encontro é único e potente por sua individualidade, por seu ineditismo. O mesmo encontro nunca vai se repetir, cada um deles é especial.
Como podemos respirar enquanto tudo desmorona? Enquanto estamos sentindo a dor da perda? Pode parecer contraditório, mas acredito que a figura do palhaço é um caminho.
Porque a humanidade do palhaço dialoga com a nossa própria humanidade, com os nossos medos, angústias, tristezas. Se aquele personagem tão falho se permite sentir, se permite viver o erro e ainda brinca com isso, como podemos não acolher e ressignificar os nossos próprios sentimentos?
No hospital, o palhaço se depara com o nascimento e a morte, ciclos sendo fechados e outros iniciados. E isso reforça a dimensão da nossa responsabilidade como instituição. E a importância de andar ao lado dos profissionais de saúde e da ciência neste momento de crise.
Nesses 30 anos de história, nossos desafios mudaram muitas vezes. Há alguns anos, remodelamos nossa gestão e reavaliamos nossa tarefa institucional, entendendo que todos têm direito à arte e cultura.
E, com a maturidade, entendemos os ciclos: sabemos que não estamos no momento de crescimento dos galhos desta árvore que é nossa associação.
O momento é de fortalecer nossas raízes para enfrentar o cenário que se apresenta. De fortalecer nossa relação com os hospitais, com o nosso público, com as pessoas em situação de vulnerabilidade, que têm direito à arte, cultura, saúde, vida.
Poderíamos dizer que voltamos aos hospitais fazendo tudo que já fazíamos antes. Mas isso diz pouco. As mudanças vão além do nariz por cima da máscara, do rigor sanitário ainda maior. Cada palhaço volta ao hospital carregando as experiência desse tempo de incertezas, de luto, mas também de novas experiências, de descobertas de possibilidades.
Voltamos de carne, osso, máscaras e narizes, palhaços que se jogam no erro e gargalham disso, nos permitindo experimentar a sensibilidade, a delicadeza e a potência do encontro com o outro, o desconhecido. Porque isso nos faz respirar e nos dá esperança de que as coisas vão melhorar.
Um abraço,
Luis Viera da Rocha
Diretor-presidente da associação Doutores da Alegria