Em nosso dia a dia de trabalho no Hospital Universitário, em São Paulo, atendemos desde crianças que acabaram de nascer e que estão em suas primeiras horas de vida a pacientes da melhor idade, bem vividos, passando por seus últimos momentos por aqui.
Passeamos pelo ciclo completo da vida com a diferença de apenas um lance de escadas. Alguns minutos separam uma ala da outra. Para aqueles que estão chegando, para aqueles que estão se despedindo ou para todos que estão em algum lugar entre os dois extremos, fazemos o mesmo trabalho: atendimento besteirológico, palhaçada, brincadeira, encontro, olhar, conexão.
E uma parceira muito especial nos acompanha em todos esses dias, nos ajudando a estabelecer encontros e conexões poderosas: a música, que tem sido importante em nosso trabalho diário, com a força de uma entidade mágica que nos auxilia em diversos momentos e de variadas formas.
Antes de prosseguir é importante dizer que a música também foi um elo determinante para que a nossa dupla, Dra. Guadalupe e Dr. Mendonça se formasse. Vou contar como foi!
Em nossas vidas pessoais, essa digna senhora ocupa espaços importantes: eu, Dra. Guadalupe, gosto muito de cantar e posso dizer que canto pelos cotovelos! Nos palcos, no chuveiro, lavando louça, dirigindo, lavando roupa… não paro de cantar e tocar.
E Dr. Mendonça faz música aos cotovelos! Já compôs diversas canções, toca vários instrumentos, dirige espetáculos musicais e canta muito bem. Foi buscando uma parceria musical para realizar o trabalho no hospital que fiz o convite para que ele se tornasse minha dupla em 2022. Ele aceitou e hoje estamos pelos corredores do HU cantando, tocando, fazendo músicas inventadas na hora, composições próprias ou buscando na memória aquelas do fundo do baú.
E podemos lhes dizer com conhecimento de causa: a música tem poder! Poder de transformação dentro das pessoas! Das mais jovens às mais experientes, ela atua mesmo como uma entidade especial!
Teve uma ocasião em que eu trabalhava com Dr. Trillo no berçário e um bebê, com algumas horas de vida, chorava na incubadora usando toda a força de seus recém estreados pulmões.
Chorava “com gosto”! Eu me coloquei bem próxima a portinhola da incubadora e comecei a cantar só para ele ouvir. À medida em que o canto foi ocupando espaço no ambiente, o bebê foi parando de chorar, até se acalmar.
Junto com ele, as pessoas que estavam em volta também foram silenciando e parando para olhar. Ele parou de chorar. Com tudo mais calmo, parei de cantar e, imediatamente, o bebê voltou a chorar. Eu imediatamente voltei a cantar e o bebê, novamente, parou de chorar. Foi um momento de forte conexão que se estabeleceu entre nós com a ajuda dessa nobre companheira.
Outro dia, eu e Dr. Mendonça chegamos para trabalhar na ala adulta e encontramos uma senhora caminhando pelos corredores. Ela disse que estava passeando e que ia visitar uma vizinha de quarto que estava se recuperando de uma cirurgia. Ela seguiu em sua direção e nós seguimos a nossa, pelo lado oposto.
Lá na frente, nos preparávamos para entrar no quarto de uma senhora que estava sendo cuidado por sua irmã e, ali da porta mesmo, cantávamos para elas algumas músicas pedidas. Foi quando aquela senhora, voltando de seu passeio, se colocou atrás de nós e começou a cantar. Entoava aquela marchinha escrita pelo sambista baiano Batatinha, que diz assim: “todo mundo vai ao circo, menos eu, menos eu…”.
Foi tão surpreendente ouvi-la cantar, lembrando de cor todos os versos e com uma disposição inusitada, que repetimos a música três vezes. Por acaso, eu sabia cantar alguns versos e foi uma delícia cantar com ela, um momento de alegria para nós, para ela e para as pacientes do quarto.
A cantoria chamou a atenção da enfermeira Sônia, que veio ver o que estava acontecendo. Ao ver sua paciente cantando, perguntou a ela:
– Ué, mas a senhora não acabou de me dizer que estava se sentindo mal?!
A senhora olhou para ela, ergueu os braços e falou com alegria, retomando seu passeio:
– Acabei de melhorar!!!
E a última situação que eu gostaria de relatar aconteceu recentemente, no dia em que estávamos comemorando o São João no hospital. Vestidos como Irmãs Caipirinhas, eu e Dr. Mendonça passamos o dia trabalhando em torno do tema da festa, tocando músicas típicas, composições próprias juninas, promovendo bingo, correio elegante, quadrilhas, tudo com distanciamento e segurança!
Já na ala adulta, o último local que visitamos antes de terminar o dia, entramos num quarto onde encontramos um senhor deitado em seu leito, com olhar perdido e estado de saúde bem debilitado. Tocávamos uma música junina no violão e na zabumba e aguardávamos uma reação do paciente. Ele estava acompanhado por um sobrinho que logo explicou:
– Este é meu tio, ele já não está escutando muito bem.
Para nós, aquele não era um problema, ele não ouvia, mas nos olhava com crescente atenção. Fui me aproximando para que ele visse melhor o instrumento e, aos pouquinhos, ele foi começando a balbuciar umas melodias, se tornando cada vez mais atento. E, em seguida, com uma voz frágil e quase imperceptível começou a pedir uma canção.
Não entendíamos bem o que ele dizia e o sobrinho, um pouco perplexo, explicou:
– Meu tio foi um grande musicista. Tocava cavaquinho, violão, já tocou muitos anos em trios de forró, serestas. A casa dele é cheia de instrumentos! Ele está pedindo a música Abismo de Rosas.
A informação nos deixou muito surpresos e felizes, mas infelizmente não conhecíamos a canção. Dr. Mendonça então começou a tocar outras no violão, dedilhou notas que Sr. Jonas, o paciente, logo reconheceu:
– Brasileirinho, afirmou.
Seu sobrinho começou a pesquisar Abismo de Rosas na internet, mas a conexão não favorecia. Quando vimos, as lágrimas já estavam descendo por seu rosto e ele falou, emocionado:
– Há muito tempo não vejo meu tio interagindo assim.
Enquanto Mendonça também tentava encontrar as notas da canção, Sr. Jonas começou a esticar os braços em direção ao instrumento, pedindo, com a voz fraca:
– Me dê. Vou tocar.
Infelizmente não podíamos entregar o instrumento pois ele estava com restrição de contaminação por contato, então sugeri que ele que soletrasse as notas para que Dr. Mendonça pudesse tocar. E ele lembrou! Aos pouquinhos, ensinava: “mi maior… lá… sol…”.
Foi lindíssimo de ver, eu estava muito tocada. Mas, para não finalizar o encontro naquele clima de muita emoção, sugeri que tocássemos algo animado! O sobrinho sugeriu Luiz Gonzaga e nos pusemos a tocar Asa Branca.
Foi então que Sr. Jonas começou a cantar os versos, cantando sozinho a última estrofe que nem a gente se lembrava! Enquanto cantávamos, o sobrinho registrava a cena com o celular para mostrar para a família.
Aproveitei a oportunidade para pedir que trouxessem os instrumentos do Sr. Jonas, para que ele pudesse tocar! Dias depois soubemos que a família chegou a levar o cavaquinho para ele, mas que ele, muito enfraquecido, não havia interagido mais.
Quase sem audição, visão e fala, com pouquíssima disposição para interagir, a música trouxe Sr. Jonas de volta à vivacidade, podendo relembrar e reviver um pouco da vida dedicada à música. Quanta honra ele nos concedeu nessa despedida!
É por essas e outras que digo e afirmo: a música tem poder! Viva sua força e sua sublime presença neste nosso mundo!