Dizem que para se sentir apto numa profissão demora dez anos.
Pois eu estou completando 17 anos de Doutores da Alegria e de hospital.
E compartilho nessas linhas algumas vivências que tenho. O palhaço é esperado para a próxima visita como uma pessoa do corpo clínico do hospital, mas é diferente, pois trata-se da visita de um palhaço. E o que é esperar a chegada de um doutor palhaço? Quem é ele? Sentimental, tímido, aloprado, louco, namorador, carente, medroso, bravo, mal humorado, canastrão, equilibrista, musicista…?
Como ele irá atender naquela manhã cinzenta? Como ele irá atender depois de uma noite mal dormida? Como ele irá atender ao olhar um paciente que acabou de se internar e está completamente assustado? Qual será o assunto que ele vai abordar? Do que vão falar?
Todas essas perguntas passam nas nossas cabeças antes, durante e depois dos nossos atendimentos.
No Instituto de Tratamento do Câncer Infantil (Itaci), a nossa rotina de palhaço começa no 3º andar. Lá é a sala da diretora do hospital. Como podemos ter tanta intimidade? A saudade do fim de semana começa com várias perguntas:
– E aí, Manela? E aí, Pistolinha? O que têm pra me contar de hoje, do final de semana…?
E assim o imaginário do palhaço dispara… Constrói frases e pensamentos tão verdadeiros que aqueles seres “palhaços” conversam de igual para igual aonde quer que ele esteja. Discutem políticas, doenças, jornalismo, besteiras, papos de manicure, novela, o que quiserem.
Descemos as escadas e já estamos prontos pra dar e receber o que virá. Um corredor extenso com pais e crianças aguardando atendimento. Depois, um enorme saguão de espera onde as cadeiras estão disponíveis como num teatro, só que voltadas para uma TV.
Depois uma ala de quimioterapia. Depois uma andar inteiro com quartos privativos. E por fim a UTI.
De uma riqueza sem fim. De uma liberdade estremecedora. De um vínculo tão ou mais forte que um namoro. De uma intimidade que não conquistamos muitas vezes em anos de casamento.
E por quê? Qual o segredo disso?
O palhaço se mostra. E ao se mostrar o outro se mostra também. O palhaço enfrenta. E ao enfrentar o outro talvez enfrente também. O palhaço se expõe e o outro poderá se expor também.
Muitas vezes me distancio e não acredito que adentramos uma sala médica, aonde estão discutindo um caso sério, e pouco a pouco, conversa daqui e conversa dali, em cinco minutos aquela sala não é mais a mesma. Parecemos amigos que se conhecem há tanto tempo. Por quê?
Na UTI, por exemplo, aos poucos fomos conquistando os funcionários e sinto uma vontade de colocar aquele lugar de cabeça pra baixo contando as minhas mazelas, as minhas virtudes, cantando, brincando, brigando com o Dr. Pistolinha!
O palhaço é. E ao ser, o outro pode ser também. Um mundo onde precisamos tanto parecer ser… O palhaço é.
E na doença não se pode fingir que não está doente. Se está doente. Creio que aí que começa a grande relação, tão forte e duradoura entre palhaços, corpo clínico e pacientes.
Estamos todos SENDO. VIVA O SER, O ESTAR.
Dra. Manela (Paola Musatti)
Instituto de Tratamento do Câncer Infantil – São Paulo