O olhar do palhaço subverte lógicas e encontra potencialidades mesmo nas situações adversas. Não poderíamos imaginar que, em 2020, uma pandemia mundial nos obrigaria, pela primeira vez em 30 anos de existência, a deixar os hospitais presencialmente. Há alguns anos, não poderíamos imaginar que uma onda de retrocesso incitasse uma parcela dos brasileiros a enxergar a cultura e os artistas como inimigos do país.
Mas, mesmo sem supor que tais coisas e muitas outras que as sucederam pudessem acontecer, em 2016 Doutores da Alegria mudou a sua governança, instituindo uma diretoria que trabalharia em várias frentes, e elaborou uma nova tarefa institucional, que propõe a arte como mínimo social, ou seja, como uma das necessidades básicas para o desenvolvimento digno do ser humano, assim como alimentação, saúde, moradia e educação.
Essas duas ações e o empenho de toda a equipe Doutores da Alegria nos ajudaram a superar as crises enfrentadas nos últimos anos, inclusive a crise de financiamento para manutenção do nosso trabalho.
Em 2020, Doutores da Alegria obteve autorização para captar R$8 milhões via Lei Rouanet. No entanto, esperamos quase sete meses pela liberação dos recursos já mobilizados por contribuintes que apoiaram a causa. Usamos todas as nossas reservas para não parar o trabalho, ainda que a distância, durante a pandemia.
Depois, em 2021, o plano da associação para 2022 foi arquivado pela então Secretaria Especial de Cultura. O decreto 10.755 limitou a inscrição de planos anuais apenas para museus públicos, patrimônio imaterial e ações formativas de cultura.
Naquele ano em que comemoramos 30 anos de atuação no país, lançamos uma campanha nacional para mobilizar a sociedade civil e evitar que encerrássemos nossas atividades.
Com diálogo, ética e responsabilidade, a associação enfim conseguiu autorização para adequar o plano e captar R$12 milhões. O recurso contribuiu com 30 meses de trabalho, de janeiro de 2021 a junho de 2023. Só em 2022, beneficiamos mais de 211 mil pessoas.
Uma das lições que tiramos dos últimos anos é a necessidade de diversificar as fontes de receita que mantém Doutores da Alegria e contar com toda a sociedade: seja por meio de doações de pessoas físicas, seja pelo consumo dos produtos culturais criados pelos artistas da associação, como espetáculos e palestras, seja pelo apoio às nossas causas.
Uma delas é a defesa da Lei Rouanet, instrumento fundamental para uma sociedade que se pretende crítica, inventiva, viva e conectada com sua gente.
Como proponente da lei de incentivo à cultura desde 1997, a associação Doutores da Alegria usa o mecanismo para levar adiante ações nos campos da cultura, saúde e assistência social.
Sem o recurso de empresas e pessoas que contribuem via lei, todos os anos, não seria possível impactar crianças internadas, acompanhantes e profissionais em hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS) que recebem esse trabalho gratuitamente no país.
É preciso considerar também que a cultura, além de ser direito básico, ajuda a desenvolver o nosso país economicamente.
De acordo com dados do Observatório Itaú Cultural, em 2020, a economia da cultura e das indústrias criativas (ECIC) do Brasil movimentou o equivalente a 3,11% do Produto Interno Bruto (PIB). Isso quer dizer, por exemplo, que a economia da cultura e das indústrias culturais ultrapassou setores como o automotivo, que respondeu por 2,1% das riquezas do país em 2020.
Os investimentos na área de cultura dão retorno para toda a sociedade. Doutores da Alegria tem certeza disso: em 2018, o Programa de Formação de Palhaço para Jovens, da Escola Doutores da Alegria, que completou 18 anos em 2022, passou por uma avaliação do Instituto para o Desenvolvimento Social (IDIS).
Utilizando a metodologia do Retorno Social do Investimento (SROI), com foco no impacto sobre os jovens, descobrimos que a cada R$1 investido no programa, R$2,61 são gerados em benefícios sociais.
Antes do programa, a renda mensal média dos alunos era de R$868. Ao final do curso, esse valor era de R$2.085, o que significa um aumento de 140% na renda mensal do jovem.
Entendemos que a situação no Brasil neste momento é de atuar ainda mais fortemente no combate às vulnerabilidades sociais, inclusive por meio da cultura.
Em 2022, ano de retomada do presencial sem interrupções, os palhaços voltaram aos hospitais públicos, após os meses pandêmicos, e notamos crianças e adultos em situações de vulnerabilidade maior do que antes.
É hora de as empresas se comprometerem, usando recursos e sua posição social para enfrentar essas sequelas.
Eu, você, nós, precisamos cobrar ações incisivas dos governantes e apoiar organizações da sociedade civil que atuam na ponta – seja em hospitais, favelas, terras indígenas.
Doutores da Alegria reafirma seu compromisso na defesa da cultura como direito neste país. Estamos cada dia mais empenhados em construir alegria a partir do encontro com o outro, seja no hospital, no teatro, nos centros culturais ou empresas. Entendendo que juntos, como sociedade, podemos criativamente inventar um futuro mais justo para todos.