Machucou? Passa mertiolate.
Dor de cabeça? Tem um analgésico ótimo.
Caiu? Vai passar!
Desde cedo nos ensinaram medicamentos e receitas para passar a dor. Sim, passar, já que curar deve ser mais caro. Saudade de quando a dor passava com o beijinho de mãe e com o sopro da vó. Pronto! Passou! Shiiii… Também servia pra esfriar comida na colher e espantar cisco no olho.
Saudade de cair e nem doer tanto, mas chorar muito só para lamber o catarro que escorria do nariz, tomar banho com dengo e, no almoço, ter bolinho de feijão com farinha amassado na hora pelas mãos da mãe. A gente cresce e vai tendo outra relação com a dor. E quando se trata de filhos, essa dor é cratera. E o sopro tem que ser na alma.
UTI, silêncio.
Ali encontramos com pessoas que estão há algum tempo longe de suas casas, de seus trabalhos, dentro de uma história que não foi escolhida e muito menos desejada. No hospital, o tempo é outro. O dia parece demorar mais e a única certeza é o desejo de voltar para casa. Penso que essas pessoas estão vivendo em uma outra esfera, suas vidas estão em suspensão.
E com isso vem um novo olhar para tudo, uma nova respiração, onde uma espécie de cortina fina de seda desce diante dos olhos provocando uma névoa e convidando um olhar profundo para dentro. Um olhar que percebe a imensidão de nós mesmos e quanto tempo é preciso ser gasto para aprofundar e chegar em algum lugar que não sabemos onde.
Mas precisamos ir, confiar, desconfiar e ir ainda mais, mesmo quando a queda é pancada, mesmo quando dói, destrói, reconstrói.
Na companhia de Dr. Eu, bem ali na UTI do IMIP, olhei para um dos quartos e vi, através da porta, como uma moldura, uma pintura forte que tinha os traços de Frida Kahlo: luz natural de dia, um menino que se contraía na cama em posição fetal, comprimindo a expressão do rosto. De um lado, pedaços de uma mãe devastada, apoiando seu corpo perto do filho. Do outro lado, um pai que mesmo estando de pé, desmoronava, seus braços cruzados denunciando a impotência diante da situação.
O quarto estava mudo. Só olhando bem para os olhos dos dois conseguíamos ouvir uma cachoeira que se derramava para dentro deles. Sem nenhuma palavra pedimos permissão para entrar. E vocês devem estar se perguntando o que dois palhaços fariam ali.
Da porta também me fiz essa pergunta e a resposta veio naturalmente: não tínhamos a pretensão de fazer aquelas pessoas gargalharem, não entramos no quarto para contar uma piada e fingir que estava tudo bem. Seria mentira. Nosso trabalho não é o de enganar a dor, e sim o de tentar conviver de um jeito mais leve.
Entramos no quarto e, na delicadeza do silêncio, nos comunicamos. Cantamos uma música baixinho. Nosso desejo era colorir um pouco o dia com uma demão suave. Nos despedimos com um ensaio de riso desenhado na boca e uma constelação dentro dos olhos.