Texto por Lola (Giovanna Freire, aluna da 9ª turma do Programa de Formação de Palhaço para Jovens)
Para quem vive de rua, às vezes o riso é uma passagem efêmera. Como entregadora, cruzando a cidade todos os dias de bicicleta, consigo enxergar um pouco de poesia nas esquinas e, há alguns anos, transbordar algumas sensações através de versos.
Mas como transformar esses sentimentos e situações (nem sempre muito legais e inspiradores) em cena ou, mais desafiador ainda, em riso?
Acho que sempre acreditei no riso como ferramenta para transformação, tanto de pessoas quanto de territórios. Mas como permear o imaginário alheio contando histórias de uma cidade em estilhaços?
Durante a formação de palhaço para jovens da Doutores da Alegria, percebi que todas essas coisas que eu vivia na rua de certa forma estavam presentes também na minha palhaça, a Dúvida. Quando eu, sem querer, saio batendo a bag nas pessoas que passam nas calçadas, quando desço uma ladeira e vejo que o endereço era lá em cima, quando tenho que apertar os olhos para enxergar números miúdos dos prédios ou quando ouço patifarias de porteiros e motoboys que não entendem o corre que é ser uma mina de bike fazendo entregas.
Eu descobri que a palhaçaria não é só risada. Ela é também política e é também sobre contar histórias que me pertencem. E é muito louco que a partir do momento que eu transformei a Dúvida em entregadora, ela chegou muito mais fácil ao público.
Todo mundo tem a referência de um entregador, seja um parente ou amigo que trabalha com isso, ou apenas a referência visual dessa figura tão presente no cotidiano urbano.
Na circulação do espetáculo de finalização da formação, “Corre-ria: águas que vem de nós”, passamos por várias quebradas, vários territórios, cada um com seu potencial e sua dor e, durante todo esse processo, que foi particularmente intenso para mim, percebi que nossas angústias e delícias — minhas e da minha palhaça — atravessavam a cidade de ponta a ponta.
Nas apresentações da Dúvida, algumas cenas se plantaram na minha memória. Quando uma menininha chegou em mim no final do espetáculo e falou: “Oi, entregadora, obrigada por entregar felicidade hoje”. Nesse dia percebi que, além de comida, documentos, materiais recicláveis e remédios, eu posso entregar algo mais.
Ou quando nos apresentamos na Cidade Tiradentes (SP) e uma das articuladoras do espaço contou que várias crianças não estavam indo para a escola porque a ponte tinha quebrado e não conseguiam atravessar o rio. Ou quando nos apresentamos em uma casa de repouso e muitas das pessoas que ali estavam tiveram seu primeiro contato com o circo e com o teatro naquele momento.
Ou quando, em uma escola na zona sul, minha palhaça entrou em cena pela segunda vez e um menininho falou que já estava com saudade. Seria essa saudade de outra pessoa que também fazia entregas?
Por todos esses momentos, eu, que às vezes me vejo presa ao áspero do asfalto, comecei a entender o palco como uma possibilidade.