Que trânsito! Saímos às 9h de Petrópolis e chegamos ao Hospital Estadual Alberto Torres, em São Gonçalo, na exata hora combinada: meio-dia. Isso porque o GPS sempre “ajuda” a nos perdermos em acessos e ruas na estrada.
A chegada ao hospital foi objetiva: fomos à sala de comunicação, conhecemos algumas pessoas e logo nos encaminhamos ao almoço. Comida boa, conversa boa, mas fomos rápidos, pois o tempo era contado!
O espetáculo estava previsto para às 14h, sendo que a montagem do cenário é de aproximadamente 1h. E assim foi: às 14h estávamos prontos, com cenário e materiais, mas ainda faltavam maquiagem e figurino e, o mais importante, o público.
Fui me arrumar e “Tia Raquel”, a brinquedista, foi buscar as crianças. Já pronto, minha parceira e musicista desse espetáculo, Andressa Hazboun, vem ao meu encontro antes de entrarmos juntos com sua sanfona me embalando e, logo que me encontra, me atualiza:
– Ei, o cenário caiu e eu dei uma ajeitada mais ou menos.
– Está bom, chegar lá eu vejo, respondi.
Meu perfeccionismo já se curva à minha curiosidade e disponibilidade ao jogo: como será que da perna de pau eu consigo ajeitar o cenário? Quais conflitos isso envolve e quais soluções posso encontrar nesse acaso, vulnerável e exposto ao público, sem a menor ideia do que pode acontecer?
No meio do caminho, interagi e brinquei com aqueles que passavam por mim que, por sua vez, me corresponderam com entusiasmo. Saindo da porta para o espaço da apresentação, as carinhas curiosas já olhavam por cima de um pescoço esticado.
Não sei o que me dá, mas, do nada, achei de passar por outro lugar que não o convencional, o jardim! Assim, passando por cima da grade, que se transforma em um brinquedo, descubro esse cavalinho e começo a brincar.
Atravesso para o outro lado e me deparo com um leve declive, desço propositalmente embalado como se não conseguisse controlar as passadas e bato de cara na parede do prédio. São repertórios costurados de acordo com as circunstâncias de cada espaço e jogo.
Chegando ao local da apresentação, as avarias não foram tão grandes no cenário, mas ainda assim me deram possibilidades de jogo. Um ajuste na posição da cortina e um acerto na placa “circo”. Nada muito rico para interagir, até que a placa cai no chão, e eu estava de perna de pau.
Eu tentei pegar, mas não alcançava. Uma das pessoas da equipe veio pegar a placa, me entregou, e assim que ela virou de costas, eu joguei a placa no chão de propósito para ela voltar. Ela voltou reclamando de dor nas costas e que já havia tomado remédio. Eu poderia fazer pelo menos mais três repetições da ação, mas, na segunda vez que ela pegou, senti uma demora de compreensão do jogo por parte dela, e optei por não continuar, pois poderia perder o timming da brincadeira (ou causar uma lesão na coluna da colaboradora!).
Eis que demos início à apresentação já aquecidos na relação com o público, pois o teatro já tinha começado a partir do momento em que os espectadores bateram o olho no palhaço.
Confesso que não foi fácil, vários fatores extra performance me afetaram. A correria da manhã, a discussão matrimonial, o trânsito infernal, tudo nos afeta na hora de atuar. É preciso concentração e técnica para “virar a chavinha”. Mas o principal fator de hoje era a responsabilidade de estar num projeto da associação Doutores da Alegria.
Eu me tornei um palhaço por causa deles, busquei formação na área por causa deles, sempre sonhei em trabalhar com eles.
Acredito que toda e qualquer oportunidade de apresentar um espetáculo é única, mas não tinha como atuar com tanta naturalidade hoje. Preciso destacar essa apresentação como fora da curva.
O escorregão do querer ser interessante ao invés do estar interessado me rodeou por todo o tempo como uma assombração, mas a técnica ainda me salvava e me centrava na relação com o outro, em prol da causa maior que é o momento presente, sem interferências externas, passadas ou futuras, apenas no ali e agora.
Seguimos, o espetáculo foi bem, me diverti, Andressa também, o público também, inclusive a equipe Doutores da Alegria, Silvia e Wallace.
Eram quatro crianças na plateia e aproximadamente 20 adultos, entre acompanhantes e equipe de saúde. É um espaço diferenciado de atuação. No “Circo do Seu’Leo”, a plateia é minha dupla, minha “escada”. Conto com as reivindicações das crianças para fomentar o jogo cênico.
Nessa oportunidade ímpar de atuar no hospital, pude perceber que as crianças estavam num fluxo energético mais brando, não correspondiam como de costume, de modo contestatório às mágicas falhas.
Mesmo assim, um riso aqui, outro acolá, entremeando pequenas adaptações de números, encerro o espetáculo com a sensação de missão cumprida.
No final, ainda ganho o presente da linda Mariá, que vem falar da “Vovó, a vovó, minha vovó…e mais alguma coisa da vovó”. Não compreendi nada além da Vovó e pergunto inocentemente:
– Essa aqui é sua Vovó? – indicando a acompanhante que segurava sua mão.
A própria acompanhante responde:
– É A MAMÃE!
O meu palhaço MortaNdela é sempre mais forte do que eu e sempre se manifesta. Disfarço a gafe mudando de assunto e apresentando minha equipe enquanto ouço gritos de imbecil, vindos das profundezas de minha consciência.
Na desmontagem, fui entendendo um pouco mais sobre São Gonçalo. Estamos no inverno e mesmo assim foram mais de 7 copos d’agua no pós-show. Imagine no verão!
Desmontamos e guardamos as coisas no carro, mas ainda tinha a brinquedoteca para conhecer.
No caminho para guardar as coisas no carro, encontro com crianças no estacionamento e, mesmo sem nariz vermelho ou sapato grande, vejo olhares curiosos por conta do meu figurino e maquiagem. Ensaio alguns tropeços ao atravessar a rua, trombadas no carro e batida de porta nos dedos, me comunicando apenas com o corpo, usando e abusando de repertórios centenários e infalíveis.
Voltando à brinquedoteca, tia Raquel, com seu jaleco tipo “tie dye”, estilizado por crianças que já foram hospitalizadas, nos recebeu em seu local de trabalho mostrando um pouquinho mais do dia a dia das crianças. Que espaço precioso de interação e ludicidade, quanto acolhimento numa sala de aproximadamente 16 metros quadrados de pura fantasia!
Reflito sobre a importância desse local familiar às crianças, em contraste ao ambiente hospitalar, numa estratégia de auxílio ao tratamento, promovendo o bem-estar e mantendo viva a vontade do brincar.
Penso também de que forma essa ludicidade pode ser trabalhada com os adultos em situação de vulnerabilidade hospitalar? O que é familiar para o adulto, que possa fazer ele se sentir em casa? De que forma a autoestima dele pode ser reanimada em meio às suas aflições clínicas? Como podemos cuidar dessas pessoas além da perspectiva da doença? Fiquei surpreso com o Hospital Estadual Alberto Torres, que me inspira a acreditar ainda mais na saúde pública, na sua manutenção e na conservação da sua estrutura.
Por Léo Gaviole
Palhaço MortaNdela