Hoje quem conta a história não é um palhaço. Ou melhor, é Sandro Fontes, mais conhecido como dr. Sandoval, que preferiu tirar o nariz vermelho pra contar esta história pra gente.
27 de outubro, manhã de domingo, exatamente às 8h. Estava em casa com minha família, todos dormindo, quando o celular de minha esposa toca… Ela atende e a expressão que vejo em seu rosto não é nada boa.
No telefone, uma enfermeira do Itaci. Diz que uma criança que elas cuidaram com tanto carinho, a L., de 6 anos, entrava em estado terminal depois de uma longa batalha contra a doença que lhe acompanhava desde pequenina. Eu a conheci em 2010 no Itaci, quando fiz dupla com o dr. Dadúvida.
No telefone a enfermeira faz um apelo:
– A L. quer muito ver os Doutores da Alegria. Ela faz esse pedido a todos que entram em seu quarto… Mas tenho medo que não dê tempo, pois ela não está nada boa.
No dia seguinte L. receberia morfina e a equipe temia não haver tempo hábil para que visitássemos a paciente na segunda-feira (dia do nosso trabalho nesse hospital), já que ela seria sedada a partir deste momento. Que situação difícil… O que fazer? Como fazer? Às 11h30 tenha uma viagem para Santos a trabalho, será que vai dar tempo? Será que consigo encarar essa situação? Então decidi: sim, eu vou!
Liguei para o dr. Charlito e dr. Zequim, palhaços que atuam neste ano no Itaci, mas infelizmente os dois não puderam comparecer. Zequim estava fora de São Paulo e Charlito trabalhando em seus projetos teatrais. Mas apoiaram em minha decisão. Liguei também para o coordenador artístico dos Doutores da Alegria, Fernando Escrich, para saber se “tudo bem” levar essa ação em frente. Ele deu sinal verde.
Comecei a me trocar em casa mesmo.
Vesti meu figurino, coloquei meu jaleco e antes de começar a me maquiar, liguei para outros dois artistas: o Anderson Spada (dr. Dedérson) e a Tereza Gontijo (dra. Guadalupe). Expliquei a situação.
Fiquei muito atordoada e tive medo do que poderia acontecer. Como ela estaria? Em que estado eu encontraria a família? Não. Não me sentia preparada. Mas não consegui parar de pensar no caso. Fiquei tentando achar explicações para o fato dessa solicitação ter chegado até mim. Será mesmo que eu não era capaz? E comecei a pensar em como seria e no que eu poderia oferecer. Pensei em exames besteirológicos, em músicas e acabei me dando conta de que não estaria tão desprotegida assim!, conta Tereza Gontijo, a palhaça Guadalupe. Quando ela revelou ao Anderson o que passava em sua cabeça, ele disse:
– Calma. Vamos fazer o que fazemos todos os dias. E ele tinha toda a razão.
Eu me senti exatamente como um médico que é solicitado para uma emergência e imaginei que eles também deviam sentir-se como eu, em posse de tamanha responsabilidade: uma mistura de medo e satisfação!, contou Tereza.
Chegamos, nos olhamos, respiramos fundo, e sem muitas palavras entramos no hospital e seguimos em direção à enfermaria. Fomos recebidos pelas enfermeiras e funcionários, que nos olhavam com muito brilho nos olhos. É difícil descrever o que aqueles olhares nos diziam, mas nos demonstravam muita força e orgulho de estarmos ali por uma causa tão nobre. Todos ansiosos. L. e seus pais se preparavam no quarto para receberem os palhaços, ou melhor, os médicos besteirologistas!
Depois de alguns minutos, a porta do leito se abriu e o dr. Sandoval, a dra. Guadalupe e dr. Dedérson entraram no quarto. A L. estava sentada na cama, respirando com a ajuda de uma máscara de oxigênio. Ao que nos pareceu, deveria estar sob o efeito de drogas fortes, o que se notava pelo estado dopado. Não sabíamos por onde começar.
Começamos dando um oi! e a conversa foi se desenvolvendo naturalmente. Todos foram se acomodando e os jogos e brincadeiras de palhaço foram acontecendo. Acredito que, por alguns minutos, todos se esqueceram da situação cruel ali presente.
Começamos a nos divertir com um desfile com música para a mãe. Logo depois, a pulga adestrada de dra. Guadalupe, a Olga, se apresentou fazendo saltos acrobáticos e equilibrismo. Durante o número, as meninas se lembraram de algo…
Dr. Sandoval e dr. Dadúvida deixaram há três anos uma pulga com a L., para que ela cuidasse… E não é que ela cuidou da pulga todo esse tempo?
Antes do número acabar, ela entregou a pulga diretamente na peruca de Sandoval. Puxa! Respirei fundo, me emocionei por trás da máscara de palhaço, que esbanjava um sorriso enorme. A menina acompanhava tudo o que fazíamos, mas estava um pouco desorientada, até que, ao final da visita, quando tudo virou uma confusão entre os palhaços, Sandoval pegou seu violão para bater na bunda de Dedérson e a menina falou:
– Não briguem, vai devagar…
Sandoval então pediu para que L. contasse até “três” para bater com o violão na bunda do besteirologista. Guadalupe aguardava com a porta aberta. Ela contou:
– 1, 2, eeeeee… 3… Bum!
Os três palhaços foram projetados para fora do quarto, deixando L. com um sorriso no rosto. Voltamos para nos despedir e então, quando íamos fechar a porta, a maçaneta se soltou e caiu no chão… Mais um sorriso! Usamos a maçaneta de telefone, brincando mais um pouco, e em seguida se despediram de todos.
A porta do quarto se fecha.
Saímos com um pouco de pressa, nos despedimos de todo o pessoal que nos aguardava fora do quarto e seguimos adiante pois tínhamos que viajar e trabalhar fora de São Paulo. No estacionamento, nos abraçamos, nos olhamos e sentimos nossos corações calmos e com a sensação de dever cumprido.
Dr. Charlito e dr. Zequim chegaram a visitar a L. na segunda e na quarta-feira, mas ela não estava mais consciente. Então, na quarta à noite, dia 30 às 18h, ela partiu.
O que dizer agora, não sei… Sei que fiz o que meu coração mandou, fiz o que um palhaço, aliás, nós palhaços, talvez não devêssemos fazer. Quebramos barreiras inimagináveis e fizemos um trabalho digno e sério durante todo esse tempo em que L. esteve internada. Conquistamos o respeito e o carinho de uma pequena garota que, em seus últimos instantes, pediu para nos ver. E o de seus pais, que num momento tão delicado, nos deixaram entrar!
Até onde vai o jogo de palhaço? Até onde podemos chegar?
Não sei… Sei que chegamos até ali e tenho grande orgulho de mim e de meus colegas que pintam a cara e foram para a guerra… Guerra de onde às vezes voltamos machucados… Com cicatrizes… Mas com dever cumprido, tanto como palhaço, quanto como ser humano!
Sem mais palavras… Pois foi muito difícil escrever todas essas.
Um abraço,
Sandro Fontes (dr. Sandoval)