Quem nunca ouviu a expressão “mude o ponto de vista para ver de outro ângulo”? Ou mesmo, “mude a forma de ver o mundo e o mundo muda”? Essas frases, ditas assim do nada, parecem mais uns daqueles conselhos que a gente não pede, mas que a mãe da gente dá mesmo assim só pra gente parar de reclamar da vida.
Mas como as mães sempre estão certas, esses conselhos também estão. E foi numa manhã de trabalho que eu comprovei: quando a gente muda o jeito de olhar, tudo muda de lugar. Quem me ensinou isso foi um menino de uns oito anos de idade, que já não enxergava mais através dos olhos.
O encontro se deu no corredor, entre o lá e o acolá, bem no melhor lugar do mundo que há: o aqui e agora. Ele, todo disponível e cheio de vontade – vontade, aquele bichinho que cresce dentro da gente e não deixa a gente ficar parado – já veio vindo com a naturalidade de chegar junto que a gente só vê nas crianças.
Começamos a puxar um exame besteirológico de rotina e, de súbito, a mãe dele surge por trás, ainda de longe, naquela distância natural dos adultos, e sinaliza com um gesto: “ele não vê”. Ôpa!
Nessa hora a gente recalcula a rota, zera o jogo e recomeça a pintar o quadro. Para colori-lo, cabe um instante de branco, de procura, de silêncio, assim como cabe usar tudo que a gente tiver na manga, tudo que for bom rumo ao que a gente mais deseja: estabelecer o encontro com a outra pessoa.
Trabalhando como palhaça, talvez a coisa que mais sinto que exercito é uma escuta ativa, não dessas do dia-a-dia que a gente pergunta como o outro tá e quando o outro responde “não tô nada bem”, a gente só pensa no feriado que tá vindo. Não ouvimos a resposta e completamos com “aaah, que bom!”. Esse é o famoso “fala que não te escuto”.
Mas isso não interessa pro nosso trabalho no hospital e, aliás, nem deveria interessar em canto nenhum do mundo. A escuta ativa é o oposto disso, é estar atenta com todas as antenas que houver na gente, ligadas, todos os poros da pele disponíveis para o outro, numa atitude de total entrega para ouvir o que se tem a dizer, sem querer mudar ou interferir em nada.
E o encontro com esse menino começou a ser colorido… com música!
Meu parceiro, Dr. Micolino, no ukulelê, disse que ia tocar uma música que ele compôs no momento para Eduardo. Catei meu ovinho de percussão no bolso, mexi ele pra que Eduardo conhecesse o som e perguntei se ele tinha vontade de tocar, ele respondeu que sim empolgado enquanto abria a mãozinha numa espera confiante do instrumento.
Coloquei com delicadeza na mão dele e ele, no tempo de ver com a mão, sentiu o instrumento e se preparou para acompanhar Micolino na canção. Vamos lá: 1, 2, 6, 18 e começou!
“É o Eduardo, Eduardo, Eduuu ardooo, Eduardo”
-“Mas é só isso?”, ele nos perguntou.
Ôpa, vamos logo pra segunda parte!
“É o Eduardo, Eduardo, Eduardo, Eduardo…”
Que tal o refrão? Mesma coisa, só que dessa vez com a voz bem aguda
“Eduardo, Eduuuu ardooo…”.
Eduardo riu e disse: – “Mas a música é só meu nome? Muito fraca!”.
Briguei com Micolino, disse que ele deveria ensaiar melhor e colocar mais letra pra agradar Eduardo, que era um público muito especial. E ainda pude aproveitar pra tirar um pouco de sarro do meu amigo:
– “Da próxima vez, não vem com esse vestido de listrinha, nem com essa peruca assanhada e com esse nariz vermelho”
Micolino retrucou, descrevendo que não estava de vestido e que eu tinha também o nariz vermelho, para que Eduardo pudesse enxergar nossa verdadeira identidade ali.
Reencontramos Eduardo na enfermaria e brincamos com as palavras, rimas de como amor com cocô, volto cedo com limão azedo e Eduardo ria, ria, ria. Depois ele quis assustar Micolino com uma barata de mentirinha e estabelecemos uma cumplicidade.
Falei pra ele onde Micolino estava e ele foi até lá, com toda destreza e desenvoltura, e colocou meu parceiro pra correr com a barata de mentira.
O quadro do nosso encontro terminou muito bonito, pintado com músicas e sons da risada de Eduardo, que até agora ecoam no meu corpo. Muitas vezes, a profundidade tá na simplicidade de ver a vida de outro jeito, por outro olhar. E abrir-se pro trabalho é se melhorar a cada olhar, mesmo que não se enxergue.
Dra. Muskyta (Olga Ferrario), Dr. Wago Ninguém (Wagner Montenegro), Dr. Micolino (Marcelino Dias), Dra. MonaLisa (Greyce Braga) e Dr. Gonda (Tiago Gondim)