Depois de um ano muito brabo no Hospital Universitário da USP, com os palhaços se equilibrando em meio ao desmonte que o hospital vem sofrendo, tomamos uma decisão inédita e que veio ao encontro dos anseios dos profissionais de saúde.
Os Doutores da Alegria agora passam visitas na ala adulta do HU.
Em toda a nossa história, nunca havíamos ultrapassado a fronteira da Pediatria na posição de besteirologistas. E a tarefa ficou com os artistas Monique Franco e Nilson Domingues, que agora fazem o trajeto pela Clínica Médica Adulta todas as quintas-feiras. As terças continuam com as crianças, que seguem em número reduzido em função da falta de médicos (essa história a gente já contou aqui).
Monique e Nilson contam, a partir de suas reflexões, como tem sido atuar com pacientes adultos nestes últimos meses.
Mês 1, por Monique Franco
As paredes dos corredores não eram coloridas e nem havia choro de criança levando injeção. Quanto menos barulho, menos incômodo. Melhor assim. Antes de entrar neste novo universo, eu e Nilson nos olhamos nos olhos, pegamos nas mãos e, assim, com a cara e a coragem que só o palhaço nos dá, começamos a atender os adultos do Hospital Universitário.
Com toda a delicadeza do mundo, abrimos a porta. Começamos do jeito que sabemos:
– A gente pode entrar?, falando baixinho sem querer incomodar e achando chão para pisar. E ouvimos bem alto:
– Filho, fala mais alto que eu não escuto direito!
Ali já deu pra sacar que entramos em um território totalmente diferente, que necessita de uma nova abordagem e de um novo olhar para os nossos pacientes não tão novos assim. Fomos de quarto em quarto com bastante medo. Mas como dizia a vó do Dr. Chicô: “Tá com medo? Vai com medo mesmo.” Fomos de peito aberto pra nova história que está começando para nós como pessoas, como besteirologistas, e também para a instituição Doutores da Alegria.
Em outro quarto, duas senhoras. Duas Marias.
Uma sorridente, a outra com dificuldade pra sorrir, ambas admiradas com os novos doutores de caras pintadas. Uma das Marias propõe um dilema pra gente em forma de desabafo:
– Nesses últimos tempos não tenho muito motivo pra me alegrar…
Então o quarto rachou ao meio. Um lado quer música, quer rir, quer vida. Do outro lado da vida, um “tanto faz”. Nós, no meio, ficamos com a Maria da vida, pra ver se o outro lado se contaminava e se deixava viver. Conseguimos um leve sorriso, um sorriso tímido.
De um lado as crianças, as paredes coloridas e os médicos que já nos reconhecem como parte do hospital; do outro, adultos e suas histórias, seus jeitinhos de brincar. As paredes podem ainda ser frias, para os médicos ainda somos estranhos.
Só que no fundo ainda é como atender as crianças.
Entrando no quarto, pedindo licença, escutando o que o encontro nos propõe, buscando ali o que está sadio, trabalhando com o que pulsa e vive para além da doença, com esse outro lado da vida, que também é vida.
+ leia aqui: O Hospital Universitário da USP resiste
Mês 2, por Monique Franco
O frio na barriga ainda esta lá, mas já não há mais medo, já não nos parece mais tão hostil, nem tão cinzas as paredes. Deve ter muito a ver com o sorriso que agora a equipe nos recebe, que vai nos dando confiança e força. Talvez eles nem saibam o quanto fazem parte da energia que temos que ter para entrar em cada porta de quarto.
E se fossem vocês, parados ali diante da porta, olhando a placa com o nome de quem está lá dentro?
Algumas poucas informações sobre precauções, não está escrito se o paciente esta só, se ele gosta de música, qual a sua religião, nem nada. Só aquela pequena placa com nome. Você bate de leve na porta, entra e dá de cara com os olhos dos adultos em um grande ponto de interrogação.
Ambos sabemos que você não está ali para dar alta, que não veio amenizar a sua dor.
Ambos sabemos que você está ali pelo simples propósito da relação – e eles nem sempre querem se relacionar, nem sempre querem rir, nem sempre querem cantar, dançar ou ouvir bobagens. Mas pela sobrevivência no hospital, há sempre meios de cantar, há sempre meios de conversar, há sempre modos de sorrir.
Essa distância entre o vazio da expectativa de abrir a porta e o alívio de fechá-la, tendo vivido um encontro, é esse caminho que se faz caminhando. E sem querer o vazio é preenchido com histórias, com uma trilha para acessar o outro, um caminho.
Mês 3, por Nilson Domingues
Entramos no corredor da ala adulta para pegar dados dos pacientes. Vi um casal sentado que assistia a um programa de futebol. Faço uma saudação:
– VAI CORINTHIANSSSSS!
E o rapaz logo grita:
– VAI PALMEIRASSSSS!
– Isso aqui é hospital, não um chiqueiro!, retruquei.
– Isso mesmo, isso aqui é hospital, não um galinheiro!
Ao perceber que íamos entrar em seu quarto, o paciente correu e deitou em sua cama.
Entramos, Ele olhou pro outro paciente e comentou:
– Olha, aqui é quarto de palmeirense.
– VAI PALMEIRAS!, gritou o outro.
– Olha, tudo bem, eu nem gosto muito de futebol – disse eu ao perceber que estava em desvantagem – então desculpa pelo vacilo. Eu posso cantar uma música de amor, pra demonstrar meu arrependimento a vocês?
– Se arrependeu, né? Então tudo bem, pode cantar a música de amor aí!, bradaram os pacientes.
– Essa música de amor eu dedico a vocês, meus amigos: SALVE O CORINTHIANSSS, O CAMPEÃO DOS CAMPEÕES…
Corremos para o outro quarto e uma senhora que estava na cama nos recebeu com uma piada. Mas não ficamos só nas piadas, pois ela queria um ultrassom.
Bem, nós somos especialistas em pagode, som é conosco mesmo. Começamos a cantar e outra paciente surgiu e começou a cantar também. Fui pra porta e, no corredor, gritei:
– Aqui no quarto tá rolando feijoada com pagode! Só chegar!
Fizemos a festa no quarto da senhora. Foi demais cantar com os pacientes. Um ultrassom bem sucedido. Em outro quarto, fomos recebidos por pacientes já conhecidos:
– Isso é uma palhaçada!
– Aqui nesse quarto não entra palhaço!, ajudou o outro.
– Então os dois têm que sair do quarto, já que os dois são palhaços!, respondi.
– Olha que eu vou aí!
– E eu só não vou aí por que eu tô aqui.
– Que falta de absurdo! Vamos isolar esse quarto. É muita palhaçada e isso pode ser contagioso.
Dra. Nina Rosa entrou no banheiro, pegou papel higiênico e isolou os pacientes diagnosticados com excesso de bobeira. E antes de sairmos do quarto, tiramos uma selfie para deixar registrado como o nosso isolamento de papel higiênico na porta é eficaz contra o combate da epidemia de bobeira.
Entre brigas de torcidas, piadas, ultrassom de pagode com feijoada e isolamento de excesso de besteira, fica acentuada a minha certeza de que a Besteirologia é a medicina desnecessária mais necessária que existe.
As crianças, que são nossos mestres e mestras, nos dão uma aula de como ver a vida por uma ótica mais leve do que os adultos. Quando estamos com os adultos, precisamos relembrar que, brincando, a gente pode dar risada e tornar a vida um pouco mais divertida diante de todas as adversidades.
E como está sendo bom relembrar aquela energia de criança que vive em todos e que a gente esquece de vez em quando.