Desde agosto de 2023, sou estagiário do elenco recifense dos Doutores da Alegria. Durante esse tempo, acompanhei os palhaços nos hospitais, observando suas rotinas de trabalho: da chegada nos camarins improvisados aos atendimento se procedimentos besteirológicos, termo que, segundo esclarecimentos de Arilson, designa os jogos lúdicos que os clowns fazem com o seu público hospitalar.
Durante esse tempo, pude ter contato com a sala de ensaio do grupo, local onde ocorre, de forma borbulhante, a gênese de tantas ideias que garantem a manutenção da instituição e a renovação de um trabalho marcado pela beleza. Durante esse tempo, pude entender mais um pouco sobre o que é ser palhaço.
A menor máscara do mundo entrou na minha vida em 2021. No meio da pandemia, eu colocava o nariz vermelho dentro de casa, pintava o meu rosto e encarava aquela figura estranha que estava refletida no espelho. Gabiru.
Um dia eu gostaria de fazer com que Gabiru conhecesse o mundo e que o mundo o
conhecesse de volta, ele é uma grande estrela. Pelo menos é o que ele acha. Alguns anos depois, descobri que existe uma certa constelação no Recife formada por onze outras grandes estrelas: Micolino, Lui, Eu_Zébio, MonaLisa, Baju, Dud Grud, Marmelo, Muskyta, Nana Banana, Gonda e Wago.
Eles me ensinaram o que uma estrela precisa fazer para emanar luz. Nos corredores do hospital, a estrela precisa ter olhos grandes, atentos, rápidos e afetuosos. A estrela deve escutar a criança: baixar-se, olhá-la verdadeiramente, captar a sua atenção. A estrela precisa perguntar na enfermaria quantas crianças estão nos leitos e se há alguma necessidade especial.
A estrela precisa reconhecer o seu próprio fracasso e a sua própria insignificância. A estrela precisa sempre dizer sim a quem se comunica com ela, principalmente se essa pessoa for uma outra estrela. A estrela nunca anda só. A estrela precisa escrever relatórios sobre como é ser estrela.
A estrela precisa praticar ser uma estrela toda sexta-feira de manhã. Não é fácil ser uma estrela…
Desde agosto de 2023, eu percebo o quão privilegiado eu sou de acompanhar de tão perto o trabalho dessas onze estrelinhas. Elas não percebem, mas muitas vezes eu choro ao vê-las em ação. Chorei ao ver a covardia de Gonda, que corria de Micolino Lampião nas roupas da noiva Muskyta. Chorei ao ver as crianças encantadas com o menino Jesus, que veio da barriga de Mona Lisa, e ao ver o burrinho finalmente descobrir o seu som.
Chorei ao ver tantas pessoas energizadas cantando sobre um sorinho antes do almoço. Chorei porque a máscara me liberta e me faz ter conexão com camadas da humanidade que o meu nariz humano (de carne e osso, não de látex) não dá conta.
Mesmo eu não usando a máscara nesses momentos que relatei, apenas observando com meu olhar atento e meu típico caderno vermelho, eu pude ser irradiado por aquela luz que transbordava das estrelas. É uma luz que me faz, milagrosamente, esquecer o peso do mundo que está sobre as minhas costas.
A luz da besteirologia me salva e me revigora. Só me restam palavras para agradecer a essa constelação linda e rara. Ter conhecido a besteirologia tão a fundo me tornou um artista, um professor, um palhaço (sim, um palhaço!) e um ser humano melhor.
Agradeço ao Dr. Micolino pelo sapato que indica as horas, agradeço ao Dr. Lui, pela cueca vermelha, agradeço ao Dr. Eu pelas madeixas naturais, agradeço à Dra. MonaLisa pela falta de capital financeiro, agradeço à Dra. Baju pelo plantão, agradeço ao Dr. Dud Grud, resident doctor, pelo suvaco cabeludo, agradeço ao Dr. Marmelo pelos pitis marcados de inveja, agradeço à Dra. Muskyta por sempre ser aplaudida por onde quer que passe.
Agradeço à Dra. Nana por dizer sempre todas as formas que uma banana pode ser preparada, agradeço ao Dr. Gonda pelas cantorias tão bonitas, agradeço ao Dr. Wago pelo olhar marcado de bondade, agradeço à Marinalva pelo zelo e pelos lanches deliciosos e agradeço imensamente a Arilson Lopes, pela generosidade em me acompanhar e me explicar como uma constelação tão grandiosa é gerida.
Espero que um dia eu possa ter em mãos um outro telescópio que me permita admirar essas estrelas mais e mais. Desde agosto de 2023, a besteirologia iluminou minha vida e me fez conhecer remédios que, com toda certeza, me farão passar bem. Obrigado por me acolherem enquanto estagiário. Eu e Gabiru aprendemos muito com os astros do Recife. Vocês foram a melhor escola que nós poderíamos ter.