Nos primeiros capítulos da série sobre o preconceito racial, demos um panorama da sociedade brasileira e trouxemos histórias de pessoas da esfera da organização Doutores da Alegria.
Hoje, Dia da Consciência Negra, seguimos com uma reflexão histórica e teorias bastante novas que vêm surgindo no meio acadêmico. Que este 20 de novembro seja um dia essencial para que mais pessoas tomem conhecimento de que o preconceito racial não é natural, e sim político, imposto como forma de dominação. E que possamos exigir políticas públicas que o enfrentem.
Parte de mural grafitado por Eduardo Kobra
“Há negros de todas as cores. Existem, porém, muitos negros que não sabem que são negros. Mais do que necessária, a consciência negra é uma condição para impedir que nossa sociedade racista aponte do pior jeito a cor da nossa pele, nossos traços ou nossa origem. Neste país, todo negro é um sobrevivente. Sobrevivemos a toda sorte de adversidade, ao descaso, à violência, à miséria, às doenças, às piores condições de trabalho, aos piores salários, à falta de assistência, à discriminação. Sobrevivemos à escravidão, ao massacre da nossa cultura, à perseguição da nossa religião, a humilhações históricas e cotidianas. Precisamos do Dia da Consciência Negra para que todos os brasileiros possam pensar no país que querem construir. Precisamos deste dia para simplesmente celebrar o orgulho do povo negro: o orgulho de ter sobrevivido!”
Rodney de Oxóssi, antropólogo, escritor e babalorixá que há mais de 20 anos pesquisa relações raciais, racismo e religiões de matriz africana
Trazendo luz à história africana do ponto de vista dos negros, diversos movimentos e coletivos sociais vêm se mobilizando para exigir políticas públicas que possam frear a discriminação em todas as esferas de poder, sobretudo pautadas na educação de base.
+ leia o capítulo 1 da série: Um retrato do que bate à nossa porta
+ leia o capítulo 2 da série: Um relato sobre uma vida de luta na pele negra
Neste sentido, convidamos o filósofo Ricardo Benedicto, mestre em Filosofia pela PUC-SP e doutor em Educação pela USP, que já esteve em nossa sede em março com a palestra “Reflexões Contemporâneas sobre o Racismo”, para contribuir com a superação de ideias equivocadas sobre o racismo. O objetivo é que este seja corretamente compreendido e enfrentado.
O racismo como um sistema social,
por Ricardo Matheus Benedicto
“Não é, pois, na sequência de uma evolução dos espíritos que o racismo perde a sua virulência.” Frantz Fanon
A despeito dos excelentes estudos sobre o racismo realizados por Carlos Moore (2007), Racismo e Sociedade, e por Vulindlela Wobogo (2011), Cold Wind For the North, ainda persistem no imaginário dos afro-brasileiros entendimentos equivocados sobre este complexo fenômeno. Este breve texto pretende contribuir para a superação destas concepções com o intuito de que o racismo seja corretamente compreendido e enfrentado.
Antes de tratarmos destas visões errôneas, é preciso definir nosso objeto de análise. De acordo com Moore, o “racismo é um fenômeno eminentemente histórico ligado a conflitos reais ocorridos na história dos povos” (MOORE, 2007, p. 38). Para o etnólogo “desde seu início, na antiguidade, o racismo sempre foi uma realidade social e cultural pautada única e exclusivamente no fenótipo, antes de ser um fenômeno político e econômico pautado na biologia” (MOORE, 2007, p. 22). Já para Wobogo “o racismo branco é o abuso racialmente motivado baseado no reconhecimento do fenótipo ou ancestralidade praticado por brancos/europeus, suas instituições e seus aliados.” (WOBOGO, 2011, p. 23).
Os autores concordam, a despeito das diferenças existentes em suas definições, que o racismo pode ser compreendido como um sistema social estruturado para distribuir privilégios políticos, econômicos, culturais ao grupo racialmente hegemônico. Concordam também que este sistema produz ideologias que, para justificar esta modalidade de dominação, desumanizam o grupo considerado racialmente inferior.
Agora que definimos nosso objeto, podemos tratar dos equívocos mais comuns que ocorrem na análise e compreensão desta chaga que assola a humanidade. O primeiro deles consiste na explicação tradicionalmente aceita sobre origem do racismo. Esta explicação sustenta que o racismo é uma ideologia que nasceu na modernidade com o objetivo de justificar a escravização dos africanos e o imperialismo europeu. Para os defensores desta tese, o racismo teria vindo a luz por causa de razões meramente econômicas ditadas pelo desenvolvimento do capitalismo.
Esta tese, no entanto, não se sustenta, visto que não consegue explicar, por exemplo, algumas sentenças do Rig-Veda – escritas há pelo menos um milênio antes de Cristo – como as que seguem: “o Indra protegeu seus súditos arianos durante as batalhas, subjugou a gente sem leis para o bem de Manu e conquistou a pele negra”; “você Indra, matador de Vrittra, destruidor das cidades, tem dispersado os dasyu gestados por um ventre negro”; “a cor negra é ímpia” (MOORE, 2007, p. 52). Também não pode explicar a referência abaixo retirada dos escritos dos sábios do Talmude escrita no século VI depois de Cristo:
E já que você me desrespeitou […] fazendo coisas feias na negrura a noite, os filhos de Canaã nascerão feios e negros! Ademais, porque você torceu a cabeça para ver minha nudez, o cabelo de seus netos será enrolado em carapinhas, e seus olhos vermelhos; outra vez, porque seus lábios ridicularizam a minha má fortuna, os deles incharão; e porque você descuidou da minha nudez, eles andaram nus e seus membros masculinos serão vergonhosamente alongados! Os homens dessa raça serão chamados de negros, seu ancestral Canaã os mandou amar o roubo e a fornicação, se juntar em bandos para odiar os seus senhores e nunca dizer a verdade.*
* Citação extraída da obra de Elisa Nascimento Pan-Africanismo na América do Sul, São Paulo: Vozes, 1981, p. 26.
Além do mais, Moore demonstra que a origem do racismo é histórica e não ideológica, ou seja, seu surgimento não está relacionado com o pensamento de um – ou mais – determinado autor, mas sim com conflitos reais pela posse de recursos ocorridos na história dos povos.
O segundo equívoco consiste em reduzir o racismo às manifestações discriminatórias que ocorrem no âmbito das relações interpessoais. Esta posição é incorreta, pois, além de confundir os conceitos de racismo e discriminação, ignora ou nega toda estrutura de poder historicamente existente nestes sistemas organizados para distribuir privilégios com base no fenótipo. Além do mais, este entendimento estimula a crença ingênua – ou nem tanto – de que o racismo, entendido não como um sistema social, mas como ato discriminatório praticado apenas por indivíduos, ainda existe por causa de pessoas ignorantes, sem instrução e que, desse modo, tende a desaparecer com o avanço educacional e científico no país.
Para mostrar que esta crença não tem fundamento, basta lembrar que Rui Barbosa e José Veríssimo defenderam a política nacional de branqueamento, que Fernando de Azevedo defendeu e implementou no país um sistema educacional fundamentado na eugenia, que Anísio Teixeira considerava as culturas africanas primitivas e que Darcy Ribeiro considerava que no Brasil nunca houve barreiras de ordem cultural e linguística reforçando, assim, o mito da democracia racial. Estes pensadores, que ao longo da história do país deram sustentação ao sistema de dominação racial – ainda hoje vigente no país – estão longe de serem pessoas ignorantes e sem instrução. Por fim, parece muita ingenuidade acreditar que um fenômeno que surgiu há mais de três milênios tendo, portanto, que se ajustar a diversas mudanças sociais, políticas e econômicas ao longo da história vá simplesmente desaparecer devido ao avanço da educação como se os sistemas educacionais oriundos de sociedades racistas, aqui vale recordar a definição de Wobogo, não estivessem comprometidos com este sistema social.
Diante destas considerações, é urgente abandonar estas concepções simplistas sobre o racismo afim de que, inspirados nas tradições africanas e afro-brasileiras, possamos organizar instituições econômicas, sociais, culturais e políticas, pois somente desta forma poderemos enfrentar adequadamente o sistema racista vigente.”
O vídeo completo da palestra, que traz argumentos sobre a tese:
Notas de rodapé:
– artigo A Convenção Fatal: Dois Pontos de Vista. In: A Imprensa. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, Vol. XXVI Tomo VII, 1899, p. 94. E seu Discurso pronunciado na sessão cívica de 28 de maio de 1917, no Teatro Municipal. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1999, p. 35-36.
– obra a Educação Nacional Rio de Janeiro: Topbooks; Belo Horizonte: PUC Minas, 2013 e o artigo O País Extraordinário In: Jornal do Comércio, 04 de dezembro de 1899.
– obra Da educação física: o que ela é, o que tem sido e o que deveria ser. São Paulo: Melhoramentos, 1960.e a obra de Jerry Dávila Diploma de Brancura Política Social e Racial no Brasil 1917-1945. São Paulo: UNESP, 2006.
– Tiago Ferreira, O que o foi o movimento da eugenia no Brasil: tão absurdo que é difícil de acreditar. Disponível em: https://www.geledes.org.br/o-que-foi-o-movimento-de-eugenia-no-brasil-tao-absurdo-que-e-dificil-acreditar e o livro de Pietra Diwan: Raça Pura. Uma história da eugenia no Brasil e no mundo. São Paulo: Contexto, 2007.
– artigo Educação e unidade nacional. In: Educação no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976, p. 326.
– obra Nossa Escola é uma Calamidade, Rio de Janeiro: Salamandra, 1984, p. 22 e seu artigo A América Latina existe? In: Ensaios Insólitos. Rio de Janeiro: Ludens, 2011.
– Charles Mills em sua obra The Racial Contract escreve: “A supremacia branca é o sistema político não nomeado que fez do mundo moderno o que ele é hoje. Você não encontrará este termo em textos introdutórios ou avançados de teoria política. Um curso padrão de graduação em filosofia começará com Platão e Aristóteles, talvez diga algo sobre Agostinho, Tomás de Aquino e Maquiavel, seguirá em direção a Hobbes, Locke, Mill e Marx, e então termina com Rawls e Nozick. O curso apresentará noções de aristocracia, democracia, absolutismo, liberalismo, governo representativo, socialismo, capitalismo de bem-estar, e libertarianismo. Mas, embora ele cubra mais de dois mil anos do pensamento político ocidental e trate ostensivamente de uma variedade de sistemas políticos, não há menção ao sistema político básico que moldou o mundo nos últimos séculos. E esta omissão não é acidental. Ao contrário, ela reflete o fato de que os livros de referência e os cursos foram escritos e planejados por brancos que tomam seu privilégio racial como natural e não o veem como político, como uma forma de dominação. Ironicamente, o mais importante sistema político da história global recente – o sistema de dominação pelo qual os povos brancos têm historicamente governado e, de certo modo continuam a governar os povos não brancos – não é visto como sistema político (MILLS, 1997, p.1-2).
Referências:
FANON, Frantz. Racismo e Cultura. In: Em Defesa da Revolução Africana. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1980, p. 32-48.
MILLS, Charles W. The Racial Contract. Ithaca: Cornell University Press, 1997.
MOORE, Carlos. Racismo & sociedade: novas bases epistemológicas para entender o racismo. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007.
NASCIMENTO, Elisa L. Pan-africanismo na América do Sul: emergência de uma rebelião negra, São Paulo: Selo Negro, 1981.
WOBOGO, Vulindlela. Cold Wind From the North: The Prehistoric European Origin of Racism Explained by Diop’s Two Cradle’s Theory. Charleston: Books on Demand, 2011.