Saio do hospital com muitas histórias na cabeça e no coração. Recrio minha história a partir destas histórias. Histórias de crianças, de mães, de pais, de famílias, de médicos, enfermeiros, funcionários, palhaços e frequentadores do hospital.
Imagino histórias a partir dos momentos vividos, das imagens vistas, das emoções sentidas. Por exemplo…
Imagino a história do “príncipe Karabom, herdeiro do trono de uma grande tribo no Sudão. Nasceu no Brasil, pois sua mãe, a Rainha, estava grávida quando se iniciaram as guerras internas entre norte e sul do país. Seus pais vieram fugidos deixando para trás casa, pertences e amigos. O príncipe estava predestinado a voltar para sua terra de origem assim que completasse 18 anos, para recuperar a dignidade dos pais…” E por aí vai…
Na verdade Karabom (nome fictício) é um menino lindo que chegou ao Itaci e me conquistou logo de cara. Ele, sua mãe e seu pai. Os pais realmente vieram do Sudão. Ele nasceu no Brasil. Mas é só isso que sei, o resto inventei. Gostaria de poder inventar finais felizes para as histórias de todas essas crianças e que eles se realizassem assim, plim!, como mágica. Torço muito para que a história de Karabom e de sua família tenha um final feliz. Muito mesmo.
Algumas histórias não ouso imaginar, pois me parecem muito doloridas até na imaginação…
Estávamos eu e dr. Pistolinha, já sem os trajes de besteirologistas, porém com a alma ainda brincante, olhar aguçado, antenas ligadas, descendo o elevador para irmos embora, depois do dia de trabalho. De repente a porta se abre. Entra um adolescente. Ou uma adolescente? Não consegui descobrir se era menino ou menina, o que vi era uma pessoa muito magra, com ossos proeminentes, cabeça quase pelada, crânio saliente.
Ao seu lado, oferecendo o braço como apoio, uma mulher com ares de assistente social. Em seguida uma enfermeira acompanhando a dupla. Até aí uma paisagem bastante conhecida para nós. Até que entra no mesmo elevador, acompanhando o trio, um policial armado, em estado de alerta, a mão apoiada na arma como se pudesse ter que usá-la a qualquer momento.
Chegamos ao térreo, saída. Todos desceram. Quando passamos pela porta de saída estavam o adolescente de um lado e o policial do outro. Passamos entre os dois e demos de cara com um carro da Fundação Casa, ex-Febem. Uau! Que forte! Minha cabeça não ousou sequer imaginar respostas para tantas perguntas… O que teria feito esse adolescente para ir parar na Fundação Casa? Como foi sua infância? Quem são seus pais? Como adoeceu? Como se chama? O que gosta de fazer? O que gosta de comer? Como está se sentindo agora? Não consigo responder.
Isso tudo me fez lembrar uma experiência que tive: outro dia fui ver a palestra-espetáculo de um colega, Nando Bolognesi, o palhaço Comendador Nelson (ex-Doutor da Alegria) e fiquei muito tocada com o que vi e ouvi. Neste espetáculo, de forma divertida e emocionante, ele conta sua história e fala sobre como tem convivido há anos com uma esclerose múltipla.
A certa altura, entre filosofias existenciais e coisas e tais, ele começou a falar sobre a importância ou desimportância do “eu”. Pelo menos foi assim que entendi, acompanhe comigo: “Eu sou eu e estou aqui na terra. A terra tem não sei quantos bilhões de habitantes (seres humanos, sem falar nos outros seres). A terra é apenas um planeta dentro de uma galáxia chamada Via Láctea que tem mais muitos planetas que podem ser habitados. A Via Láctea é apenas uma galáxia, entre muitas galáxias que tem muitos planetas que podem ser habitados… Concluindo: eu sou eu apenas para mim mesmo. Para todas as outras pessoas do universo eu sou o outro. Sendo assim, a gente é muito mais o outro do que a gente mesmo.”
Adorei! Esse pensamento acaba mudando os pesos e valores das coisas. Tira de nossas costas o peso de ser aquele eu com meus problemas, minhas questões e nos abre para uma bela possibilidade: a de experimentar o mundo através do outro.
E isso é o que acontece com a gente no hospital, a gente se modifica a partir do outro.
Através das histórias dos outros. O Itaci é um hospital onde encontramos sempre as mesmas crianças, às vezes durante anos, onde temos a oportunidade de conhecer mais profundamente suas histórias, suas famílias, seus amigos, seus gostos e desgostos. Conhecemos os funcionários, os voluntários, os médicos, enfermeiros, faxineiros, seguranças… Uma grande equipe que trabalha unida, cada um cumprindo seu papel com a maior dignidade! Inclusive nós, palhaços, temos a nossa função bem determinada e respeitada lá dentro…
E com todas essas histórias me sinto mais forte e mais humana. Obrigada.
Dra Lola Brígida (Luciana Viacava)
Instituto de Tratamento do Câncer Infantil – São Paulo