O dia começou pedindo um ritual de concentração.
Cheguei. Luciano Pontes e Marcelo Oliveira já estavam no Hospital da Restauração. Iniciamos outro ritual: de vestir-nos. Eu tava nervosa, como fico nas estreias. Os saltos no desconhecido são sempre excitantes e amedrontadores, mas respirava. Estreei um vestido vermelho. Eu tinha bordado florezinhas e joaninhas, mexido no tamanho dele, feito ajustes no dia anterior e me alegrei em perceber que os colegas gostaram do look. Estávamos todos (coincidentemente?) na cartela do vermelho.
A primeira parte foi difícil: tudo pede presença, mas o ambiente parece ser contrário a isso. Tudo é relação no HR e, a todo tempo, acontece muita coisa. Me sentia perdida, mas me encontrava ao me jogar no jogo, na brincadeira. Dr. Lui e Dr. Marmelo eram dois padrinhos, sentia o cuidado da energia deles. E não me poupavam, me colocavam no jogo. Que bom!
“Agora canta você, Dra. Musquita!”. Ai, minhas deusas, lá vou eu. E lá vai letra inventada sobre ser musquita voadora e aquele brega de pintar o cabelo e se valorizar. Muitos apelidos também surgiram: vassoura, Olívia Palito, Sibita… Aos poucos, ia soltando a razão e, ainda atenta a ela, me divertindo com meu ridículo.
Na salinha onde a gente troca de roupa, soube da história da Pá, a menina que estava naquele mesmo andar e tivera um braço amputado. Fiquei assustada. Em que parte do corpo de Pá ainda haveria confiança nas pessoas? Soube que, no começo, ela chorava muito quando Lui e Marmelo chegavam.
Eles já sabiam e não se aproximavam, respeitando seu espaço, mas mesmo assim ela chorava muito. Juntei os caquinhos do meu coração partido e respirei fundo pra irmos ao trabalho.
Antes de entrarmos na enfermaria, Dr. Marmelo me avisou discretamente que era lá. Nesse primeiro dia, Pá estava sentada na cama, tão linda! Tinha o rosto atento, sério, mas triste. Era uma tristeza endurecida, coisa de adulto. Tinha cara de adulta. Não esboçou nenhum sorriso, mas tampouco chorou com nossa presença.
O segundo encontro foi semelhante ao primeiro: ela nos olhava com a mesma atenção, seus olhos passavam a dureza do que estava sentindo. Pá ainda tinha expressão de adulto.
No terceiro encontro, ela estava no corredor, observando a gente jogar noutra enfermaria. Eu a vi paradinha na porta junto com outras crianças. Ela era uma pequena entre os maiores, parecia que cuidavam dela ali no meio. Lembro de me alegrar ao vê-la em pé, fora da sua cama.
Quando saímos, pedimos que ela nos conduzisse até a sua enfermaria e ela, para minha grande surpresa, deu-me sua mão, sua única mão, e nos conduziu, a todos, até lá. Esse gesto foi tão emocionante pra mim, que gostaria que aquele passeio de mãos dadas com Pá durasse para sempre. Nesse dia ela riu, riu muito, uma risada cheia, e quando olhávamos, víamos uma criança linda.
Pá voltou a ter a sua cara, a cara de criança. Saímos tão felizes, tão nutridos daquela infância. Entendi que a mão que ela me ofereceu era a mão que confia nos outros, que confia na vida!
Olga Ferrario, mais conhecida como Dra. Musquita, escreve do Hospital da Restauração, no Recife