Ela é miúda e apressada na fala, a gente quase não entende seu conversar, mas algumas palavras saem de sua boca abafada pela máscara e se destacam nos nossos ouvidos: “voltar pra casa”, “dezesseis filhos”, “sexta-feira”, “minha filha”.
Foi assim que nós, Dra. Nana e Dr. Marmelo, conhecemos Dona Maria de Lourdes numa das enfermarias da UTI.
Parecia mais que a gente estava entrando em sua casa. Sabe quando chega visita e você vai logo arrumando as almofadas no sofá, recolhendo um lixinho ou outro espalhado pela sala e colocando o controle remoto no lugar certo? Pois bem, foi essa a sensação de adentrar a “enfermaria doce enfermaria” de Dona Maria de Lourdes e sua filha, Vitória.
Esticando a conversa e confirmando as informações, constatamos que aquela senhora estava ali desde a sexta-feira e já era pra ter voltado para casa, mas sua outra filha não conseguiu chegar no hospital para ficar com a irmã, então, ela ficou.
Nessa hora, pensamos que quem é mãe de dezesseis filhos tem a diplomacia toda na cabeça, consegue compreender a filha que não pôde vir, aguentar mais um pouco no hospital pela caçula e ainda ter outras quatorze histórias com os outros filhos que estão pelo mundo.
Quem é mãe de dezesseis, sabe ser mãe de tudo!
Naquele dia, ela estava parada na janela da enfermaria e sua filha Vitória dormia no leito.
– “Olá, Dona Maria. Como a senhora está bonita olhando os carros pela janela”.
– “Tô olhando o mundo”.
– “A senhora mora onde?”
– “Moro no sítio”.
– “Sozinha?”
– “Com meu marido, há 48 anos”.
– “E a senhora não enjoa dele?”
– “Não. E nem ele de mim. Eu gasto três litros de perfume por mês dentro de casa, é pra ficar cheirosa. Tenho 16 filhos e filhas”.
– “Não vai dizer que a senhora sabe decorado o nome de todos?”
– “Sei… Natanael, Roberta, Vitória, Maria José, Ronaldo, Arnaldo, Clodoaldo, Irene, Iris, Irislane, Irineu, Marcos, Marilú, Micéia, Minéia, Milton. Todos vivos!”
– “Eles moram com a senhora?”
– “Não, moram pelo mundo. Eu gosto de ouvir música de 12h da manhã”.
Reconhecemos em Dona Maria as tantas Marias que habitam o hospital, as tantas mulheres que nos acolhem à beira dos leitos dos filhos e filhas, que muitas vezes adotam a enfermaria como residência por tempo indeterminado.
Elas transitam pelos corredores e salas com a propriedade de quem ocupa esse “condomínio” da saúde. Sabem as dores umas das outras, se abraçam, dão notícias de suas proles e se sentem parte uma da outra.
Nós, besteirologistas, tínhamos ensaiado uma música dos compositores Alcino Alves, Rossi e Antonia Quadros Ribeiro para aquele dia e cantamos:
“As andorinhas voltaram
E eu também voltei
Pousar no velho ninho
Que um dia aqui deixei
Nós somos andorinhas
Que vão e que vem
À procura de amor
Às vezes volta cansada
Ferida, machucada
Mas volta pra casa
Batendo as asas
Com muito amor.”
Foi então que nossa andorinha mãe começou a cantar, a gente nem ouvia sua voz com clareza, mas vimos que mexia a boca por trás da máscara, olhando para seu 16º “coração fora do peito”, como dizem por aí.
Se ela desejava seu ninho, se ela se reconhecia como andorinha ou se ela simplesmente gostava da música, não sabemos. De outra vez que fomos à enfermaria, só estavam as irmãs. Sabemos que Dona Maria de Lourdes já regressou em bando ou para seu bando.
Ana Flávia (Dra Nana) e Marcelo Oliveira (Dr Marmelo)