Dizem que é no presente que a vida acontece, pois é no presente que temos a possibilidade de agir, de fazer escolhas, de mudar algo em nossas vidas, mesmo que de modo sutil. O passado já foi e o futuro não existe, pois quando chegar, já será presente. Se vivermos com excesso de passado, provavelmente sofreremos de uma espécie de melancolia. Se vivermos com excesso de futuro, possivelmente sofreremos de ansiedade. Viver no presente é viver, apenas.
E é no presente que o palhaço acontece. O estudo da palhaçaria aborda, entre tantas questões, a presença cênica do(a) ator/atriz. O corpo presente é um corpo vivo e tonificado, sem tensão desnecessária, um corpo disponível que escuta e vê por todos os poros, pronto para o jogo relacional.
Somente assim, presentes, podemos estar inteiros para os encontros com crianças, acompanhantes e profissionais de todas as áreas nos hospitais. “Se não estivermos inteiros no que fazemos, em cada coisa, a percepção mais profunda da existência não se configura, não se firma, não se torna uma substância mágica. Viver a vida começa com a comunhão que estabelecemos com cada coisa que fazemos”, diz Antônio Januzelli, um mestre das Artes Cênicas. Para que nossos encontros sejam potentes, precisamos exercitar esse estado de presença.
De figurino, maquiagem, nariz vermelho e nesse estado de presença, percorremos os quartos e corredores dos hospitais, visitando cada criança, seus acompanhantes e profissionais da equipe multidisciplinar: médicos, enfermeiros, seguranças, fisioterapeutas, nutricionistas, faxineiros, técnicos de vários tipos, residentes e quem aparecer pela frente.
Mas onde se esconde a memória do palhaço? Muitas vezes vivemos tão intensamente esse presente que, quando tiramos o nariz e voltamos ao cotidiano, não conseguimos nos lembrar dos detalhes, de como chegamos em tal assunto, de como o jogo se desenvolveu. A lógica do palhaço, que está magicamente além de nossa vida cotidiana, se desfaz nos boletos, nas notícias dos jornais, nas dores nas costas e joelhos.
Sem memória, não se faz história. E onde teria ido parar minha memória após um dia de trabalho intenso de brincadeiras, música e risadas ao lado de Dr. Fritz? Parece que se desfez no ar, no momento em que tirei o nariz de palhaço. Como um interruptor, que com um simples toque apaga a luz e deixa tudo escuro. Mas, nesse caso, o branco dava lugar à escuridão. Deu branco! O que fizemos hoje? Infelizmente Dr. Fritz tem o mesmo problema que eu e também não se lembrava de nada. Deu branco! Sequelas da Covid? RG avançado? Ausência da alma? Nananinanão! Vamos examinar isso de perto!
Peguei cuidadosamente aquele nariz vermelho de borracha e, como doutora que sou, examinei cada detalhe. Aos poucos comecei a observar através dele, como um olhar de fora que pudesse ver através da lente de um telescópio-nariz. E vi. Vi muitas coisas. Vi e senti.
Vi uma dupla de doutores-palhaços, Dra. Lola e Dr. Fritz, entrando em um quarto onde havia uma criança muito fofa. Ao lado dela, uma mãe toda elegante, vestida com roupa de oncinha. Batendo os olhos nela, a palhaça observou:
– Uau! Você é a Juma do Pantanal? A mulher que vira onça?
E a mãe, que não perdia um capítulo da novela, ficou toda feliz com a observação da palhaça:
– Sou sim!
– Ai, que demais! Eu queria tanto ser a Juma, virar onça… Grrrrraaauuuu!
E o palhaço emendou:
– Lola, você não é a Juma, mas pode ser a melhor amiga da Juma!
– Sério?
– Sério! Lola, a mulher que vira anta!
Para quê? A palhaça virou onça e saiu grunhindo atrás do palhaço debaixo das risadas da mãe e da criança.
Examinando ainda mais o telescópio-nariz vi outra dupla: Dra. Lola e Dr. Trillo entrando no quarto de Luma, uma menina que estava internada no hospital há muitos anos, amiga de Dr. Valdisney de outros carnavais. Luma está sempre muito arrumadinha, com vestido combinando com o laço de fita do cabelo, cuidadosamente escolhidos por sua mãe Alê. Alê é a fiel escudeira de Luma, não desgruda um minuto da menina. Mãezona querida.
Naquele dia, além de Luma e Alê, estavam no quarto mais duas acompanhantes: duas tias da Luma. E aquele era um dia de festa. Luma estava indo para casa. Depois de anos de luta, Alê conseguiu o equipamento para o home care, assim Luma seria cuidada em casa, ao lado de sua família e amigos. Que alegria! Vi através do nariz o abraço que Alê deu na palhaça ao se despedir, senti as lágrimas correrem, o agradecimento pelo tempo que passaram juntas, a confiança, a intimidade criada e o desejo de que a outra siga sua vida em paz e com muita saúde.
E as tias fizeram questão que os palhaços comessem um pedaço do bolo de milho que haviam levado para Alê. O bolo estava quentinho! Alê, sabendo que os palhaços não podiam comer em serviço, embrulhou um pedaço para cada um e colocou escondido nos bolsos deles, segredando: “Come bolo de milho porque milhora”.
Ainda pelo telescópio, consegui observar que essa palhaça, Dra. Lola, trabalhou com três parceiros diferentes no mês de maio. Que atrevida! Estava fazendo o teste drive para saber qual modelo seria o mais econômico. Olha lá ela, agora ao lado de Dr. Valdisney na UTI!
Dr. Valdisney é besteirologista renomado. Em um exame de rotina, descobriu que o remédio que Arthur estava tomando na veia fazia um barulhinho, tipo um apito. Bip! Observou o caminho do remédio entrando pelo corpo de Arthur e chegando até a cabeça do menino. Bip! A cabeça apitou. Ops! Está fazendo efeito! E continuou seguindo o caminho do remédio pelo corpo de Arthur até chegar aos pés. Bip! Ops! O pé apitou!!! Dr. Valdisney, apontando dos pés até a cabeça de Arthur falou:
– Pronto! Está fazendo efeito da cabeça aos pés!
E Dra. Lola retrucou:
– Não! Dos pés à cabeça!
– Não! Da cabeça aos pés!
– Não! Dos pés à cabeça!
– Não! Da cabeça do dedão até o pé da orelha!
Arthur e o pai caíram na gargalhada e Dr. Valdisney saiu dizendo que Dra. Lola não deveria ter fugido das aulas de anatomia. Isso é que é doutor!
Continuei observando o telescópio-nariz e vi tantas outras imagens daqui e dali. Tentei ver tudo o que estava lá escondido e girando, girando, bem devagarinho, aos poucos fui percebendo que se tratava de um verdadeiro caleidoscópio de cores, sensações, emoções, sons, danças, cheiros e sabores. E foi aí que entendi que a memória do palhaço está no corpo todo, da cabeça aos pés, no estômago cheio de bolo de milho, no grunhido da onça. No corpo presente, a memória. Um presente.