– Não entrem, ela tem medo!
Foi o que nos disse a mãe de Vitória, de 6 anos, quando chegamos à brinquedoteca da pediatria. Vitória nos viu e correu para o colo da mãe.
Eu, Dr. Cavaco, e Dr. De Dérson, ficamos um tempo congelados sem saber o que fazer. Então Dr. De Dérson disse:
– Claro, Cavaco! Com essa cara de papel higiênico molhado que você tem, muita criança fica com medo.
Vitória esboçou um leve sorriso, mas logo se escondeu no colo da mãe. Resolvemos aceitar a rejeição e sair dali. Dar à criança o poder de escolha nos pareceu a melhor opção. Nunca forçamos uma interação, ainda mais no primeiro encontro.
Dois dias depois, voltamos à pediatria e encontramos Vitória na enfermaria, deitada na cama, sem a mãe. Ao nos ver, ela se escondeu debaixo do lençol e ficou lá como se fosse invisível. Eu disse:
– Dr. De Dérson, acho que Vitória foi embora.
– Claro, Cavaco! Você assustou a menina, com essa boca de sacola. Até eu me assusto com você. Sorte a dela ter ido embora, para não te ver!
Começamos a ouvir umas risadas por baixo do lençol. Era Vitória participando de forma invisível. Então falei:
– De Dérson, o que eu posso fazer para ficar mais bonito?
– Pode primeiro tomar banho, né? Esse cheiro de cachorro molhado assusta também. Depois, pode cortar esse seu cabelo. Se quiser, eu te indico o pet shop onde cortei o meu. Tem mais: essa calça frouxa também te deixa feio, Cavaco.
A essa altura, Vitória olhava por uma fresta do lençol enquanto ria. Mas bem nesse momento, a mãe dela chega falando:
– Ela tem medo, gente! Vitória, fica tranquila! Eles já vão embora.
E assim, a criança mudou do riso para o choro em um segundo. Ficamos meio sem entender naquela hora, falamos que estávamos fazendo amizade com Vitória, mas a mãe não acreditou. Afinal, a menina esboçava um choro em seu rosto.
Aceitamos, fomos embora, e quando acabamos o plantão, conversamos sobre o ocorrido, concluindo que a “lembrança do medo” tinha vindo da mãe nas duas vezes.
Na semana seguinte, levei uma roupa bem bonita, penteie a peruca e coloquei uma flor na cabeça. Quando chegamos à brinquedoteca, Vitória estava brincando. A mãe tinha ido ao banheiro.
Dr. De Dérson aproveitou a oportunidade, entrou primeiro na sala e falou para todas as pessoas presentes:
– Gente, apresento para vocês o novo Dr. Cavaco. Finalmente, ele criou vergonha na cara e está tentando ficar menos feio. Entra, Dr. Cavaco!
Entrei desfilando, sem direcionar o olhar para Vitória e, quando comecei a ouvir a risada da menina, fui em sua direção como um verdadeiro top model desengonçado. Ela ria sem medo nenhum. A mãe chegou bem na hora e presenciou a alegria da filha enquanto eu perguntava:
– Estou melhor assim, Vitória?
– Não! Hihihihi!
– E assim, com esse outro penteado?
-Não! Hihihihi
-Com a calça mais para cima?
– Não! Hahhaha
Não consegui convencer a criança da minha beleza, mas convencemos a mãe de que o medo não iria existir se não fosse lembrado naquele momento. A Organização Mundial da Saúde (OMS) nomeia o medo de palhaços como uma patologia chamada “coulrofobia”. Existe até tratamento para sanar essa fobia, mas, no caso da Vitória, não era bem isso que estava acontecendo.
Ficamos amigos, ela teve alta duas semanas depois, e na hora de se despedir me disse rindo:
– Tchau, palhaço feio!
Depois dessa conquista, passei a ter orgulho da minha feiura!