Foi ainda sob os efeitos do calor de 38 graus, em uma rua estreita do Rio de Janeiro, próxima à famosa Escadaria Selarón, que trinta pessoas toparam se encontrar para um bate papo sobre arte e saúde.
Quem conduziu o encontro “Reflexões sobre saúde no mundo contemporâneo” foi a psicóloga hospitalar Morgana Masetti. Há mais de 20 anos pesquisando a arte – especificamente a palhaçaria – no ambiente hospitalar, Morgana trouxe reflexões em torno do entendimento que a sociedade tem sobre doenças contemporâneas, a constante medicalização dos sintomas e o papel da arte inserido na saúde.
“Hoje, o mal estar social vem sendo tratado como um mal estar individual. Problemas que seriam tratados como coletivos são tratados como pessoais.”, disse. Ela deu o exemplo da situação de violência no Rio de Janeiro, que é um mal estar social gerador de emoções como o medo. O combate muitas vezes se dá no nível individual, com o uso de medicamentos como calmantes.
Esta medicalização de sintomas individuais vem amparada pela catalogação de doenças como as enfermidades do vazio: depressão, insônia, ansiedade. Para cada doença, um bocado de remédios que controlam emoções e desequilíbrios próprios do ser humano. Morgana refletiu ainda sobre as imposições que a sociedade delega ao “eu” como, por exemplo, a obrigatoriedade de se buscar a felicidade e compartilhar isso com seus conhecidos.
Neste sentido, o sintoma pode ser visto como um lugar de resistência, um ponto de interrogação à sociedade terapêutica. “A doença e a tristeza, que fazem parte da experiência humana, começam a ser vistas como desnecessárias na humanidade. Elas tentam ser silenciadas. Os sintomas falam alguma coisa da minha ligação com o mundo, e eles precisam ser entendidos, não silenciados.”, explica ela.
Escutar e intervir
A plateia levantou questões como a importância da escuta, principalmente por parte do profissional de saúde. Dio Jaime, palhaço da Cia Sapato Velho, contribuiu: “A escuta é fundamental, porque senão você não escuta a criança que não quer brincar. Você prepara um monte de coisas, músicas, mágicas, e encontra um médico que ganha mal, que perdeu uma criança naquela noite. Você pode piorar o ambiente.”, disse ele.
Ao focar no trabalho de artistas como os palhaços do Doutores da Alegria, Morgana Masetti reforçou a possibilidade de a arte estabelecer vínculos no hospital. “O artista cria uma linguagem para afetos que pedem passagem, fazendo com que o imaginário possa circular novamente. E isso gera uma mobilidade em relações que já estão estabelecidas. Posso brincar dentro de um hospital, estabelecer outra linha histórica, outra realidade que ajude o paciente a atravessar o que está passando.”, diz a psicóloga.
O papel do artista no hospital foi outro tema relevante. Caberia à classe artística rever sua intervenção neste ambiente, tendo a clareza de que o trabalho não precisa ter como proposta a busca pela felicidade, uma vez que esta pode ser um gatilho para as enfermidades do vazio.
Eliane Fernandes, da Secretaria Municipal de Saúde, trouxe a perspectiva do gestor hospitalar: “Hoje muitos projetos chegam ao hospital sem objetivo, sem metodologia. Eu valorizo o trabalho com afetos, com memórias; não somente alegria. É preciso uma conduta pra entrar em um hospital”, reforçou.
Após a palestra, os participantes abordaram práticas ligadas à intervenção do Doutores da Alegria. No Rio de Janeiro, a organização atua por meio do projeto Plateias Hospitalares, abrindo espaço para que artistas de rua e de palco possam intervir em hospitais públicos.