Estou há mais de dez anos no elenco do Doutores da Alegria e muita gente pergunta sobre como seguir com equilíbrio emocional atuando como palhaça em pediatrias. Sobre como driblar tudo o que nos afeta no hospital. Tem dias bons e já contei alguns deles aqui. Mas tem dias ruins. E tem dias terríveis para uma palhaça no hospital. Pra esses, respondo com o relato abaixo.
Dia 19 de novembro de 2019. Chego ao hospital e estou ao telefone com minha parceira Dra. Dona Juca Pinduca, que naquele momento é minha amiga Juliana Gontijo. Naquele dia ela não pôde vir ao trabalho e, enquanto falo com ela, encontro Gabi, minha outra colega, que já espera por mim sentada nas cadeirinhas em frente à brinquedoteca. Hoje vamos trabalhar juntas.
Estou finalizando a conversa e ouço vozes altas que quebram o silêncio dos corredores da Pediatria. São vozes agitadas. Alguém está chorando? “Ju, preciso desligar, está acontecendo alguma coisa por aqui”, digo. Alguns médicos que passam interrompem seu caminho tentando entender o que se passa. Uma médica amiga esboça um sorriso e, com pesar, afirma:
– Hoje o dia tá complicadinho por aqui.
Eu e Gabi nos levantamos e nos aproximamos da porta da brinquedoteca, onde nos reunimos com a Adelma, enfermeira e brinquedista, que é nossa parceira de longa data. Ela vê meus olhos preocupados e responde, sem que eu precise perguntar:
– É um óbito. Essa mãe acabou de perder sua filha.
O tempo entra em suspensão, meus olhos involuntários buscam ver a cena e identificam uma mulher no fim do corredor, sendo aparada no lado esquerdo pela Lúcia, psicóloga do hospital, e do lado direito por um homem que parece ser seu companheiro.
O hospital silencia e ouve aquela mulher. Ela não chora. Ela não grita. Ela urra de dor.
A voz que sai pela sua boca parece eclodir da parte mais profunda do seu ser. Naquele momento entendo que é isso que significa âmago. É dali que irrompe a voz gutural do seu desespero. “Eu quero a minha filha. Eu quero a minha filha”.
Meu corpo fica estático por um momento e, logo após, tenho pressa de encontrar a chave para abrir a porta da salinha onde nos trocamos, pois dali a alguns instantes não conseguirei conter as lágrimas que sinto prestes a sair. Entro na sala, sento na cadeira e choro muito. Minha vida seguia tão ordinária até ali. Café, filhos na escola, caminho até o hospital, suco, questões de ordem prática a serem resolvidas, um telefonema e ponto. Ponto não, reticências. Queda no abismo. Uma vida interrompe seu fluxo e um urro de dor perfura meu coração. Minhas vísceras estão pegas e sendo espremidas pelas mãos invisíveis do inefável. Choro no limite do que consigo controlar, mas gostaria de chorar muito mais.
Não teço nem pensamentos. A dor é uma onda que invade. É tsunami. Desejo fugir. Quem sabe não trabalhar. Minha parceira de trabalho me traz um copo d´água e pergunta o que aconteceu, ela não tinha conseguido compreender. Tento falar. Tenho muita dificuldade de falar quando choro.
– É uma mãe, perdeu a filha. Ela gritava… eu quero minha…
Não dá. Tento não me desesperar e não criar identificação com a cena que vejo, um esforço brutal. Tenho dois filhos e se arrisco qualquer pensamento, mesmo tentando me esquivar disso, fico completamente aterrorizada. Já vivi momentos fortes no hospital em dez anos de trabalho, mas nada como ouvir o grito de dor dessa mãe. Nada como ser mãe e vivenciar tal situação. Passo a entender, plenamente, o que significa “empatia”.
Vou ao banheiro, me refugio e choro mais. Lavo o rosto, sei que devo chorar e colocar isso para fora, mas tento que não seja demais. Há um dia de trabalho pela frente. Há um dia de trabalho pela frente? Ao sair do banheiro vejo vários rostos conhecidos na frente da UTI. São as mães dos outros pacientes que se retiraram e ali, do lado de fora, choram juntas. Posso imaginar qual não é o pavor delas também. É terrível demais. Queda no abismo. Silêncio n´alma.
Aos poucos vamos nos trocando, não tenho pressa. Uma frase ecoa muito no meu pensamento: “Sou palhaça. Sou palhaça… sou palhaça…”. Devo ficar? Devo ir embora? E as outras crianças, nas outras alas? O trabalho é para elas também. Sou humana, sou Tereza e sou palhaça.
Nova vontade de ir ao banheiro, já estou caracterizada. Saio para pegar a chave e as enfermeiras me contam que outra criança está parada na UTI.
– Outra criança?
– Sim, a do leito 4.
– Sim, conheço…
– Estão tentando reanimá-la.
Volto para a salinha e conto que tem outra criança parada. Acho que hoje não é dia de palhaçada, pelo menos não ali. Saímos em silêncio e desviando o caminho habitual, subimos direto para o terceiro andar. Lá chegando, comento com um médico que a coisa “tá braba lá embaixo”.
– Lá no PS?, ele pergunta.
– Não, na enfermaria.
– Ah, porque tem uma criança bem complicada no PS.
Fico chocada, o Pronto Socorro é nosso próximo destino. Mais uma vez queda no abismo. Silêncio n´alma. “Sou palhaça… sou palhaça… sou palhaça?”. Seguimos. No terceiro andar os atendimentos correm bem, é possível fazer algumas piadas, ouvimos risadas, tocamos música. É bom. Pegamos o elevador e encontro justamente uma enfermeira do Pronto Socorro. Comento logo:
– Puxa, eu soube que as coisas não estão fáceis hoje lá.
– Não estão. A criança faleceu.
Novo desvio no percurso, decidimos não ir até lá. Faremos a enfermaria e o dia acabará por aqui.
Para entrar na enfermaria, as recomendações são outras. Uma mãe estava muito nervosa pela manhã, quis bater na funcionária que serve a comida. Talvez o ideal seja só uma passadinha. “Obrigada pela informação. A gente vai ver o que faz”. E fazemos. Dança. Funk de sanfona. Brincadeiras.
Uns partem. Outros vivem. Muitos permanecem. Conseguiram reverter o quadro da criança parada na UTI. Encontro a avó perambulando pelo corredor, nos conhecemos já há muitos meses. Tentamos, de alguma maneira, dizer que estamos ali. Sorrindo e chorando ela diz, esperançosa, ou pelo menos tentando manter a fé na sua própria esperança:
– Deus está no controle.
Nos trocamos, fim do dia. Ainda quero chorar. Os ecos da mãe voltam aos meus ouvidos e os olhos respondem enchendo-se de lágrimas. Estão tatuados em minha alma. Encontro meus filhos em casa e tenho a certeza de que nunca mais os verei da mesma maneira. Tudo está diferente aqui.
Sou palhaça. Não trabalho no circo. Vejo a morte ali na esquina. Vejo choro e choro. Vejo dor e dói. Música. Gargalhadas. Risos e lágrimas. Deus. Comando?
Sou palhaça e estou aqui. É só o que ocorre e é tudo que posso dizer.