Quando a gente nasce, nascemos de alguém, saímos de uma barriga que pertence a alguém. Normalmente, esse alguém é nossa mãe. Nunca conheci alguém que não tenha nascido de uma barriga e que não pertença a alguém e que, por sua vez, não seja um filho da mãe. Sim, somos todos filhos da mãe!
Claro, nem sempre é a mãe que nos cria, tem pessoas que são filhos da mãe criados pela avó, pelo pai, pelo avô, pelo vizinho, pelo abrigo. Tem gente que é filho da mãe e que conhece sua mãe só depois de grande, e tem filho da mãe que nunca irá conhecer mãe nenhuma.
No Hospital do Campo Limpo, onde trabalha eu, Dr. Mendonça, minha parceira, Dra. Guadalupe, e o nosso mais novo besteirologista da Zona Sul, Dr. Amnésio, O Inesquecível, atendemos filhos da mãe de todos os tipos, mas, normalmente, todos acompanhados.
Há algum tempo, logo no começo do ano, ainda com a Dra. Sarita como nossa parceira, entramos em um quarto de isolamento na UTI Pediátrica. Nos deparamos com um par de olhos gigantes e atentos de um serzinho que tinha acabado de chegar ao mundo e que, com alguma dificuldade e sob ajuda de muitos fios e aparelhos, mantinha-se vivo e ligado a esse mundo.
Lembro que ele chorava, com aquele choro doído, e que sempre nos deixa em dúvida se nossa presença vai ajudar ou atrapalhar. Dra. Guadalupe se aproximou das grades do berço e, entre os espaços, conectou. Conectou seus olhos com os olhos daquele pequeno e, com um “ultrassom” tranquilo, conseguimos acalmá-lo. Por alguns segundos, ou minutos, e logo depois: “buááááá”.
Na saída do isolamento, uma das enfermeiras nos contou que aquele filhinho da mãe estava sem ninguém. Isso mesmo, ninguém. Estava por conta nesse mundão. Que a mãe não tinha voltado para buscá-lo e o hospital estava cuidando para que ele ficasse bom e a assistência social fizesse os próximos encaminhamentos.
Naquele momento, aquele menino já tinha a nós como parceiros. Não iríamos abandonar nosso parceirinho dos olhos brilhantes. E foi assim em todas as nossas chegadas na UTI, sempre encontrávamos os olhos grandes daquele recém-chegado.
O acompanhamos atentos e carinhosos com música, papos e choros, porque nós não somos mágicos. Quando podíamos, perguntávamos se a situação ainda era a mesma, e sim, infelizmente, ninguém sabia muito mais sobre a família e muito menos sobre a mãe.
Até que um dia, chegamos na UTI e vimos uma mulher ao lado do bebê dos olhos arregalados. Pensamos ser alguém da assistência social, talvez alguém responsável por algum abrigo, ou melhor, uma tia, uma avó, alguém da família. Com calma, e com todo jeito, fizemos uma pergunta bem discreta:
– “Quem é você?” – ansiosos e nada calmos.
– “Sou a mãe dele”, respondeu a mulher com toda tranquilidade.
Ele não está sozinho. Ele não está sozinho. Ficamos atônitos, nem sei se conseguimos disfarçar, mas engolimos todas as questões que passavam na nossa cabeça e apenas falávamos.
-“Que bom que você tá aqui!”, “Que bom que você chegou”, “Não dá mais esse susto na gente!”.
Enfim, ele não estava mais sozinho. Não sabíamos se era por definitivo, se na outra semana ela ainda estaria ali, mas sei que ela estava, e estava como se não tivesse nunca ido embora, lidando com a situação com uma normalidade “expressionante”.
Aquele dia foi feliz e esquisito, muito bom e muito estranho, tranquilizador e espantoso. Pensamos muitas possibilidades para o ocorrido e para o sumiço: largou porque não queria, mas arrependeu e voltou; depressão pós-parto, algo que afeta muitas mulheres; condição financeira precária; o pai da criança que a obrigou a abandonar; tem outros filhos e realmente não tinha como ficar no hospital, porque tinha que dar conta dos que ficaram em casa, enfim.
A única conclusão a que nós chegamos, é que ele não estava mais sozinho.
Quer saber, os dias foram se passando, e a mãe continuava lá. O pequeno dos olhos grandes foi para o quarto e a mãe continuava lá. Um mês e pouco depois, o bebê melhorando e a mãe continuava lá.
Hoje ficamos sabendo que ele vai fazer uma cirurgia em alguns dias para corrigir um problema em uma das válvulas do “estrômbigo”, para estancar o refluxo e, muito provavelmente, depois vai para casa. O melhor é que não vai sozinho, porque, ainda bem, ele não está mais sozinho.