Peço licença a vocês para escrever uma carta diretamente para o Lyan. Na verdade, nem é assim que ele se chama. Inventei esse nome para guardá-lo um pouquinho porque a história que eu conto aqui não tem graça nenhuma.
Querido Lyan, Escrevo esta carta alguns dias após nosso último encontro na enfermaria. Ao entrar, encontrei você dormindo na última cama à esquerda, próxima à janela. Vi que você estava em um sono tranquilo, talvez resultado de uma noite em claro devido aos sintomas que o levaram ao internamento.
Compreendo que o hospital apresenta diversos desafios, especialmente ao compartilhar o quarto com outras nove crianças e seus acompanhantes em um momento tão delicado como a doença.
Sua mãe, talvez desejando aproveitar esse momento para tomar um banho relaxante ou desfrutar de uma refeição mais saborosa do que o café da manhã rotineiro do hospital, estava com a bolsa pendurada no ombro e cochichou em meu ouvido:
– Vou ali rapidinho.
Curiosamente, olhei para sua mãe antes de ela sair do meu campo de visão e perguntei:
– Você gostaria que eu acordasse o Lyan para acompanhá-la?, tenho uma habilidade especial.
de acordar quem está dormindo, mas ela recusou.
– Não, por favor, deixe-o dormir, pelo amor das deusas protetoras das mães no hospital!, disse ela.
Enquanto eu e o Dr. Micolino vigiávamos seu sono sem a intenção de perturbá-lo, ouvimos um grito de outra mãe que estava na cama ao lado. Não gostaria de repetir as palavras exatas dela, Lyan, mas, como esta carta será lida por todos no hospital, tomei coragem e escrevi:
– Podem acordar esse filhote de urubu! Ele não deixou ninguém dormir essa noite.
Naquele momento, um profundo pânico racial tomou conta de mim. Testemunhei um ato de racismo contra uma criança negra que sequer completou dois anos de vida. Senti um impulso de interromper o atendimento. Meu sorriso desapareceu.
Quis abaixar o nariz, zerar a brincadeira… quis sair do quarto. A alegria fugiu de mim naquele instante, aquilo não era uma piada. Senti-me impotente e desimportante diante da violência direcionada a você.
Dei conta de todo o racismo que ainda terás de enfrentar ao longo de tua vida. Quis protegê-lo, mas sabia que não havia defesa contra uma estrutura que violenta uma criança negra de várias maneiras. Fui incapaz de encontrar palavras ou ações para confrontar essa realidade e aquela mulher. O pânico me paralisou.
Gostaria que entendesse que minha paralisia não significa falta de cuidado ou compromisso com você. Como um palhaço negro, percebi que não sabia como agir diante de uma situação extrema de violência.
O que um palhaço deve fazer nessas circunstâncias? Minha paralisia foi frente a uma sociedade racista mostrando sua força contra nós, mais uma vez.
Então, peguei meu violão e comecei a cantar uma música de ninar. Enquanto embalava seu sono, desejava que pudesse viver em um mundo livre de opressão. Dei as costas para aquela pessoa que representava uma sociedade doente, talvez seja a sociedade inteira que deveria estar no hospital.
Peço desculpas por não ter sido capaz de defendê-lo naquele momento, mas prometo que estarei ao seu lado, lutando contra o racismo e trabalhando para criar um mundo divertido e quentinho para nós.
Dr. Wago Ninguém (Wagner Montenegro), Dr. Micolino (Marcelino Dias), Dra. MonaLisa (Greyce Braga), Dra. Muskyta (Olga Ferrario) e Dr. Gonda (Tiago
Gondim).