Dizem que cada pessoa é um mundo povoado de sonhos e desejos. Como se coubesse dentro de nós um cadinho de tantos que somos e das coisas que temos e queremos.
Se assim acreditamos, vivemos rodeados de uma constelação planetária de mundos que se esbarram no trânsito louco dos encontros. Confesso que o mundo dos outros, às vezes, me deixa mais encantado do que o meu. E sou flagrado querendo aquele mundo pra mim.
A cama da enfermaria parecia maior do que ela. Era como uma cama king size gigante, maior do que um carro onde se pega carona. Ela parecia gostar dali, não havia queixa, sem expressões de dor, era como um colinho bom de mãe. Sua cama estava bem perto de onde a gente lava as mãos pra começar o trabalho dentro da UTI pediátrica. E mesmo parecendo os estranhos no ninho, com tanta coisa diferente (chapéu, maquiagem, nariz vermelho, camisa florida), não obtivemos sequer um olhar dela. Contemplava o branco infinito do teto como se meditasse.
Chegamos batendo na porta, chamando pelo seu nome, que estava escrito numa prancha acima da cama. Ela tinha cinco anos e estava imóvel, com um olhar atento, escutando o chamado. Tudo era bem delicado e pedia menos do que a gente costuma pensar que criança gosta. Às vezes, crianças não curtem ver vídeo de bonecos coloridos dançando e cantando ao mesmo tempo.
A voz da gente era sussurrada, igual a um passarinho aprendendo a cantar. Quando o tempo daquela conversa mole nos pareceu suficiente, veio a vontade de mergulhar nas águas tranquilas e agitar um pouco, fazer uma baderna boa.
Dr. Marmelo retira do bolso um chocalho em forma de ovo de galinha. Como era fácil brincar com ele! Como se movesse céus e terras, ela aceita tocar conosco, sem nada dizer com palavras, apenas gestos. E de posse do instrumento, ela balança sem parar, fazendo o som chamar a atenção da equipe médica e de técnicos que estudavam os casos mais graves do dia. Agora eu entendia o fascínio que os pequenos mundos nos movem.
Ela fazia uma translação de mundos, como um móbile pendurado no teto se movendo ao balanço do vento. Seu mundo girou rápido depois de tanta calmaria e, para não agitar muito e virar um redemoinho, marcamos para continuar na próxima visita.
Assim foram mais de quatro encontros, entre sins e nãos, sempre sem falas; apenas olhares e mover de olhos e cabeça. Aquela rotação de mundo nos fascinava. Era do tamanho de uma grandeza que assusta, mas um assustado bom.
Para surpresa nossa, a pequena já não se encontra na UTI e foi para o 4ª andar da Enfermaria, o que significa que seu quadro evoluiu, como se ela entrasse numa outra esfera dos planetas alinhados, para uma dimensão melhor. Em breve ela deve ter alta e desbravar com seu mundo os outros mundos que lhe esperam.
No último encontro, ela não quis nem brincar e nem fizemos cara feia feito meninos birrentos. Mas deixamos marcada uma próxima visita e repetimos várias vezes o combinado, para ela não esquecer. E, assim, a vida gira entre asteroides, planetas, mundos que se cruzam e que fazem o universo estrelar das coisas pequenas e grandes dentro do hospital.