Somos feitos de obrigações e sonhos, claro que não é só isso, mas passamos bem perto desta divisão durante a vida. Sendo que na infância quase não somos afetados pelo mundo das obrigações mais torturantes, pelo menos deveria ser assim, mas caminhamos e nos deliciamos na maior parte do tempo no mundo dos sonhos e fantasias.
No hospital há essa ambiguidade. Por atendermos na maior parte do tempo crianças com suas imaginações borbulhantes. As conversas, as brincadeiras, os encontros são recheados de fantasias e zero obrigações, a não ser pelas obrigações médicas para os cuidados necessários para cada caso.
Porém, na maioria dos atendimentos besteirológicos somos provocados e provocamos a busca pela imaginação. Uma imaginação que nos leve a lugares pra além do hospital, mesmo sabendo daquela realidade, às vezes, momentânea.
Esse último mês, dentre tantos atendimentos com muuuuuitas besteiras e bobices, chegou a nós lá no Hospital do Campo Limpo, um caso diferente, se é que existem casos iguais. Uma garota de 14 anos, já não tão criança imaginativa, mas bem longe de ter obrigações como nós adultos, chegou acidentada. Uma fatalidade.
Pegou carona de moto com um conhecido no baile e sofreram um acidente. Caíram. Poderia ser apenas alguns ralados ou fraturas simples, mas não. Ela tinha sofrido um esmagamento de um dos pés, uma fratura gravíssima.
A equipe médica disse pra nós que ela tinha acabado de receber a notícia que seria necessária a amputação de parte do pé e que ela tava dando muuuuito trabalho. Que aos gritos ela não permitiu que a equipe médica desse sequência ao atendimento. Penso eu, LÓGICO!! Eu estaria bem pior!
Fomos eu, Dr. Mendonça e Dr. Cavaco fez uma pequena reunião pra saber o que iríamos fazer. Lógico que decidimos tentar, iríamos passar na frente do quarto dela para ver o clima.
Lá no Hospital do Campo Limpo, os quartos têm portas sem aqueles pequenos vidros que é possível ver a situação do quarto antes mesmo de abrir, então, é sempre delicada a entrada nos quartos, e quase sempre abrimos uma pequena fresta antes e damos aquele rápida bisbilhotada pra sentir, e entrar.
Quando chegamos no quarto da garota, colocamos o nariz pra sentir, já tomamos um não de uma senhora que depois fomos descobrir que era a mãe dela. Ela dizia “não…não…” com uma cara de muita tristeza e transtorno. Aceitamos o não como é comum muitas vezes e seguimos nosso dia.
A partir desse dia, a cada terça e a cada quinta em que a garota ainda estava por lá, era uma surpresa e uma busca entre nós besteirologistas de como conseguir atendê-la. Alguns casos pra nós são complexos, porque são recheados de muita realidade. E quando a dose de realidade é gigante, como conseguir acessar a fantasia?
Agora um a parte com vocês leitores. A besteirologia é uma ciência que vem se aprimorando durante muito tempo, aqui em Doutores faz exatamente 33 anos. Por aqui já passaram muitos besteirólogos, e todos avançaram um pouco mais na pesquisa besteirológica.
Temos exames, temos protocolos e, mais do que isso, temos nosso coração de palhaço que busca uma conexão real com o paciente, seja ele quem for, e seja o diagnóstico que for.
A nossa busca é acessar não apenas o quarto, mas acessar alguém que está por detrás da dor, por trás do medo, por trás do diagnóstico, e conectar. Dizer através de um exame (jogo), uma brincadeira (teste), uma música (ultrassom), que nós estamos ali por alguns instantes sofrendo ou se alegrando juntos, conectados.
Nesse caso, uma garota de 14 anos que perderia o pé. Decisão, à essa altura, irreversível. Lembro que por alguns dias não conseguimos nem entrar no quarto. Aquela mãe ainda amedrontada por tudo, não nos deixava entrar.
Até que um dia, estava eu e a Dra. Ursa Maior, uma das MAIORES besteirologistas do nosso corpo besta, fazendo nossos atendimentos e a porta do quarto da garota estava escancarada. Dra. Ursa Maior já tava sabendo de todo o caso, porque eu tinha repassado toda a fofoca médica. Paramos. Em silêncio, olhamos.
Ela deitada olhando pra porta com a perna pra cima, nos viu. A mãe encostada na janela ainda reticente, olhou. A irmã estava mexendo no celular e parou para nos observar. Ali da porta ficamos frações de segundos tentando pensar o que fazer. Era ouvir nossas cabeças girando em velocidade altíssima pra achar o que pudesse ser uma boa ideia.
– Estamos passando só pra te mandar um beijo. Pode? – tentei eu.
Um mínimo sinal de positivo veio da irmã. Manusiei como se tirasse um beijo dos lábios e joguei em direção dela, a irmã. Nada aconteceu.
– Que isso? Meu beijo passou direto! – tentei.
– Mendonça, saiu pela janela! Eu vi! – complementou Dr. Ursa.
Uma risadinha aconteceu lá dentro daquele quarto. Continuamos.
– Dr. Mendonça, deixa que eu vou tentar… – disse Dra. Ursa.
Arrematou um beijo dos lábios e jogou. Certeiro! A irmã pegou!
– Guarda aí! – avisei.
Ela guardou no peito.
– Vou jogar outro. – animou Dra. Ursa.
Jogamos pra mãe. A mãe pegou!
A garota mudou de muuuito leve o semblante. Mas, nós somos treinados para estarmos atentos aos sinais mais imperceptíveis. Detectamos.
Outra vez era possível ouvir nossos pensamentos buscando algum jeito desse beijo chegar na garota. Já estava lindo, mas trabalhamos com o risco. O risco de dar certo.
– Se a gente jogar um beijo pra senhorita (a irmã), você mandaria para sua irmã? – tentamos.
Preparamos o melhor beijo, o mais carinhoso, o mais profundo, e jogamos. A irmã pegou, recebeu, amaciou, ajeitou e mandou pra garota. A garota?
Pegou. Pegou e guardou no peito. Nem sei muito o que dizer.
Não quero que soe arrogante, mas confio tanto no nosso trabalho. Confio tanto na nossa honestidade palhacística besteirológica como uma medicina de sonho e de realidade, de acesso a mundos que não podemos ver, que me dedico e sei que meus colegas da junta médica besteirológica também se dedicam com muito amor para que outras tantas crianças ou adultos atendidos por nós, por um instante, saibam que não estão sós, esquecidos, ou sofrendo sozinhos em uma cama de hospital.
Haverá sempre um Dr. Besta com o coração escancarado para fazer dessa dura realidade, um caminho menos solitário.
Estamos aqui.