Muita gente do Recife, quando ouve essa pergunta, logo entende o sentido. Outras pessoas acham estranho pato comendo lama, se quem vive na lama é caranguejo chié, uma espécie de tamanho bem menor na família dos caranguejos. Nossa cidade é conhecida mundialmente por seus mangues, rios e pontes.
Na hora da limpeza, uma enfermaria do hospital, acredite, também vira mangue. A profissional da limpeza normalmente usa seu EPI (Equipamento de Proteção Individual) e, quando damos de cara com ela, enxergamos um caranguejo, pela máscara e pelas luvas que parecem com as patolas do bichinho. Como se não bastasse, geralmente o chão está molhado. Então, ao abrir a porta, sempre perguntamos se podemos entrar e elas nunca negam. Está feito o mangue! E como sou besta que só a gota, pego meu pandeiro e pergunto:
– Por que no rio tem pato comendo lama? Por que no rio tem pato comendo lama?
Ester, a profissional da limpeza, responde:
– Mangue, mangue, mangueeeee… podem entrar!
Entramos eu e Dra. Baju cantando essa célebre música do nosso querido Chico Science (1966-1997), que retrata bem a realidade da nossa cidade e fala de diversos bairros, o que é muito legal e divertido. E, naquela empolgação toda, com quem a gente encontra nesse mangue? Adivinha? Isso mesmo, com o Chico! Mas não o Science. Chico, o nosso paciente. Perguntei para ele:
– Por que no rio tem pato comendo lama?
– Porque tava com fome!
Caímos todos na risada, inclusive Ester, o caranguejo de plantão.
Falei:
– Olha só, Chico, você está no meio do mangue, vê só que legal, até caranguejo tem…!
Nesse momento, Ester começa a fazer movimentos dos braços, imitando um caranguejo.
– Olha aqui, Chico, que caranguejo lindo, as patolas são amarelas, olha!
A mãe do Chico falou:
– A gente é do interior e nunca viu caranguejo não, mas a música é boa!
Continuamos a cantar a música falando dos bairros do Recife, das pontes e, no final, Chico já batia palmas mostrando estar com a ritmologia em dia.
– Olha só, agora a senhora e Chico já conhecem boa parte da cidade, aqui mesmo posso citar um trecho da música que diz: “É Macaxeira, Imbiribeira, Bom Pastor, é o Ibura, Ipsep, Torreão, Casa Amarela, Boa Viagem, Jenipapo, Bonifácio, Madalena, Boa Vista, Dois Irmãos. É Cais do Porto, é Caxangá, Capibaribe, é o Centrão, eu falei….”*
Noutro dia, a gente encontrou Chico caminhando no corredor. Cantei outra música do Chico Science, só que desta vez parodiando:
“Eu só quero andar, nas ruas do hospital
Andar com minha mãe olhando para os lados
Olhando para frente
Eu vejo dois palhaços” **
E falei:
– Olha só, Chico, um passo à frente e você não está no mesmo lugar…
Ele riu, olhou para trás e viu que já dava uma certa distância da porta de seu quarto. Balançou a cabeça e pediu à mãe para voltar para o mangue. Chegando lá, de volta ao mangue do seu quarto, tinha um eletricista fazendo uma manutenção. Chico logo pediu para que cantássemos a música do mangue e assim fizemos. O eletricista se contagiou com a energia, pegou um alicate e uma chave de fenda e entrou no meio da nossa banda, a Banda Besta, trazendo um molho percussivo todo especial. Chico adorou e os residentes também, que fizeram a maior plateia em uma janela pequena de todos os tempos. É tão bom falar da música e da cultura da gente!
*Música “Rios, pontes e overdrives “ (Chico Science,1994)
** Música “Um passeio no Mundo Livre” (Chico Science, 1996)