Essa pergunta parece nova, mas já foi formulada – e respondida! – inúmeras vezes na história. Seus termos sofrem ligeiras variações em função do contexto socioeconômico do local e da época em que a pergunta é formulada.
Alguns exemplos: “Para que poetas em tempos de carência?”, “Para que arte se o que falta é pão?”. Realmente, se a questão é a fome, parece evidente que um prato de feijão com arroz seja a prioridade.
Também não teríamos dúvida em afirmar que, entre uma dose de antibiótico e uma gag de palhaço, é da primeira que se espera resultados contra infecções. E face à ameaça do coronavírus, o palhaço mais eficiente é aquele que mais longe permanece fisicamente do hospital. O mais adequado é aquele que está em casa.
Viu só como a arte, a poesia e a palhaçaria são supérfluas? Não, não vi.
Repare nas seguintes frases: “Contra a fome, a comida”. “Contra a doença, o remédio”. Elas são verdadeiras, mas, apenas em aparência, completas. Uma maneira de completá-las seria resgatar o seguinte verso dos Titãs: “A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”. E vale frisar que esse “a gente” expresso na canção significa todo mundo, significa absolutamente toda e qualquer pessoa.
A diversão e a arte não devem ser privilégios de quem já tem o que comer. Comer e se divertir é um direito fundamental de cada ser humano existente no planeta. Que a arte, então, seja considerada uma necessidade básica. Ou, como defendemos aqui na Doutores da Alegria: “Arte como mínimo social”.
Mas você dirá: ninguém se diverte se não estiver de barriga cheia e com saúde. E eu direi: pode ser verdade.
E completarei: ninguém sobrevive se também não tiver alimento para o imaginário e para o espírito, seja qual for sua classe social, sua etnia, seu gênero, sua idade, sua nacionalidade, sua religião, seu time de futebol… Olhe para os lados e perceba que o quadro que você vê na parede, que a fotografia que você vê na revista, que a música que você ouve no rádio, que a dança que você vê na rua, que a série que você vê na TV e que grande parte do que você vê e ouve no seu celular é feito de arte, concebida por artistas.
A arte está em toda a parte. E não é de hoje.
Repare que o ser humano sempre teve necessidade de criar rituais que o transportasse para além das necessidades básicas que já conhecemos (comer, beber, dormir, procriar…); os grupos sociais têm se colocado desde os mais remotos tempos em volta do fogo para criar e ouvir relatos de vida ou narrativas míticas; a família que se coloca diante da televisão nos dias de hoje também está saciando essa mesma necessidade de abertura do imaginário e o mesmo desejo de vivenciar emoções reais provocadas por obras de ficção.
A arte talvez não seja palpável e concreta como um pedação de pão ou um comprimido de paracetamol. Seus efeitos talvez não sejam medidos com os mesmos códigos e métodos das análises clínicas e laboratoriais, e talvez por isso ela possa parecer inútil.
Se você estima que uma atividade útil é somente aquela que tem objetivos exatos, mensuráveis e lucrativos, possivelmente você achará que a atividade artística é inútil. Mas se você concebe que a criação de signos imateriais, que a produção de metáforas ou que a simples brincadeira que toda criança brincou na infância são geradores de movimentos vitais para a abertura de nosso imaginário, aí sim, a suposta inutilidade da arte será talvez o que ela tem de mais útil para nosso desenvolvimento coletivo.
Nós, palhaças e palhaços da Doutores da Alegria, somos artistas. Nosso ofício consiste em lançar mãos dos recursos próprios da arte para resgatar a capacidade que a criança tem de brincar, de imaginar, de criar mundos fantásticos e poéticos mesmo quando hospitalizada.
Devido a pandemia que nos assola, estamos em casa. E em casa continuamos trabalhando com o mesmo afinco para essas crianças.
Reinventamos nossa maneira de entrar no hospital sem estar fisicamente no hospital. Nossa arte tem chegado às crianças e à equipe de profissionais de saúde através da produção de vídeos e intervenções on-line. Temos a chance de poder agir dessa maneira. Temos a chance de lembrar que a arte, não só pela leveza do entretenimento, mas também pela pungência em nos apontar nossas facetas menos polidas, é de extrema relevância. Ela vem fazendo isso desde a aurora dos tempos.
E talvez seja sobretudo em momentos de crise, como esse que atravessamos agora, que a arte e artistas ofereçam alento, esperança, reflexão, crítica e diversão para que a luz no fim do túnel apareça mais rápido… Ou, ao menos, mais colorida.