Já havíamos encontrado K. algumas vezes. Bem-humorado, portador de uma conversa fluida e inteligente e sempre com sua fiel (mãe) escudeira ao lado. Mas houve um dia em que nossa conversa enveredou pelas curiosidades do garoto: ele quis saber o que mais fazíamos além de sermos palhaços.
O Dr. Pinheiro contou-lhe sobre sua extensa jornada no circo, de suas viagens pelo mundo e de seu ingresso numa trupe de artistas, bem conhecida no meio, e emendou:
– A Greta faz teatro, está até em temporada. Teatro sério, de adulto!
– Que legal! Eu também faço teatro.
– Sério? Onde? Na escola?
– É, na escola, mas não na escola, escola, numa escola de teatro mesmo, na Macunaíma.
– Caramba! Não acredito! Eu estudei teatro na Macunaíma, foi minha primeira escola, fiz aula com grandes mestres.
Nos encontros que viriam a seguir, descobriríamos que o garoto estava ensaiando para apresentar a peça “Meu Malvado Favorito”. Ele faria um importante personagem, estava radiante. Perguntei se poderia ser um dos minions e ele deu risada, dizendo que pelo menos o tamanho deles eu já tinha garantido.
Bem, depois disso o menino desapareceu por uns dias. Como sentimos falta do seu “bom papo”, perguntamos a uma das médicas que dia ele viria novamente. Ela nos disse que mais uma vez ele havia desistido do transplante, e que já era a terceira desistência. Ao questionarmos sobre essa decisão por parte do paciente, ela nos disse que se eles (os pacientes) assim desejassem, eles tinham que respeitar sua escolha.
Ficamos surpresos e chegamos a comentar que talvez fosse por causa do teatro. Coincidentemente, na semana seguinte, lá estava ele. Ficamos muito felizes em vê-lo e mais felizes ainda quando ele contou de sua estreia, já marcada para o mês seguinte. E ele fez questão de nos convidar!
Como artistas, sempre conversamos muito sobre o trabalho e as relações nos hospitais. Os vínculos se dão, claro, afinal são muitos encontros; no entanto, há a indicação de que não nos apeguemos demais às crianças porque isso pode levar a uma desestabilização emocional, visto que perdemos muitas delas no decorrer do processo de visitas. Estamos sempre atentos a isso, porém há fatos que nos levam a quebrar as regras e não dá para explicar por que isso acontece.
E foi a primeira vez, em 12 anos, que aconteceu comigo. Quando K. nos falou de sua apresentação, fiquei fascinada. Desde aquele momento não pensei em outra coisa senão em ir assisti-lo. Foi exatamente o que fiz. Não havia comprado ingresso, por isso cheguei bem mais cedo para ver se conseguia na bilheteria. Estava perambulando pelo foyer quando a mãe dele chega até mim, pergunta se eu não era aquela palhaça do hospital e diz:
– O K. acabou de entrar no Teatro!
– Ele estava nervoso?
– Sim, andava de um lado para o outro, e antes de entrar me perguntou se você vinha.
– Então não vá contar a ele que estou aqui, quero fazer surpresa!
– Combinado.
Eu estava com minha filha, da mesma idade que o garoto, e ela fez questão de acompanhar minha primeira visita a um paciente fora do hospital. Eu estava muito ansiosa… Enfim, chegou a hora! O espetáculo começou e quando ele entrou em cena fui tomada de tal emoção que não pude conter as lágrimas. A força daquele menino em cena foi algo que me tocou profundamente.
Quando a peça estava por terminar, me transportei de volta ao hospital – maquiagem, nariz, roupa – a Dra. Greta estava na sala de espetáculos. Foi uma experiência nova, sair de palhaço no meio do público, que se surpreendeu.
O Teatro estava cheio, a família de K. o esperava na saída, pai, mãe, irmãzinha, tios, avós. Era o seu momento, por isso me apartei. Quando os atores saíram para cumprimentar o público, fiquei observando o garoto ser calorosamente abraçado por todos e, de repente, nossos olhares se cruzaram. Seu olhar era de surpresa. Ele saiu do meio das pessoas e veio em minha direção já de braços abertos, aquele abraço me dizia o quão grato ele estava por minha presença. Ele não disse nada. Tudo o que tinha que ser dito, foi dito naquele abraço que parecia não ter fim.
Depois, entendemos que o show tinha que continuar… Ele voltou aos seus e eu, à minha casa. O garoto não está mais se tratando nos dias em que realizamos nossas visitas, porém, ao chegar ao hospital num dia desses, fui chamada pelas enfermeiras:
– Greta, o K. deixou um bilhete para você!
O encontro significou muito para nós. O que havia no bilhete, bem, isso é segredo nosso.