Nesse mês eu gostaria de falar sobre as mães e os pais que encontramos na nossa rotina diária de trabalho.
Costuma-se associar primeiramente o palhaço à criança e essa relação é realmente o centro do nosso trabalho, que orienta todos os outros projetos desenvolvidos pela ONG Doutores da Alegria. Mas a criança está, na maioria das vezes, acompanhada de seus pais e não há como trabalhar ignorando a presença deles. Pelo contrário, nos preocupamos tanto com os pais como com seus pequenos.
Dia desses visitamos a pequena K., na UTI do Hospital do Grajaú, em São Paulo. Quando entramos, ela estava acompanhada por sua mãe, que cuidadosamente penteava seus cabelos. K. é uma criança que precisará de cuidados médicos por toda sua vida e sabemos que esta talvez não seja uma situação fácil de lidar. Mas no olhar de sua mãe eu pude ver, com certeza, que não há obstáculo que possa impedir esse amor de se manifestar ou enfraquecê-lo.
Nos posicionamos ao lado das duas e começamos a cantar uma música. A mãe não desgrudou os olhos da filha enquanto a acariciava. Eu via seu olhar penetrar nos olhos da menina, transmitindo uma imensidão de amor e carinho. Fiquei muito emocionada e muito tocada pela força desta mãe e de todas as outras, que enfrentam diariamente as agruras de uma internação, mantendo-se firmes, ainda que balançadas, pelo tempo que for necessário.
Quando encontramos uma mãe ou pai pela primeira vez, dependendo da situação em que seu filho foi internado, precisamos nos aproximar com cautela. Não sabemos exatamente a situação que estão vivendo, mas sabemos que para nos aproximarmos de suas crias é preciso ganhar sua confiança. Algo que nem sempre acontece no primeiro encontro. As reações são diversas. Alguns ignoram nossa presença, outros resistem ao riso para não se entregarem tão facilmente.
A reação pode ser de estranhamento também. Muitas vezes me sinto olhada como alguém que olha um extraterrestre e se pergunta que criatura é aquela e o que está fazendo ali.
Entramos num quarto onde só havia bebês, a televisão estava ligada num volume elevado e um deles não parava de chorar. Começamos a cantar uma canção, bem suavemente e, pouco a pouco, fomos capturando a atenção dos nenéns e de seus pais. Conseguimos instaurar silenciosa calma no ambiente.
Uma mãe olhava dentro dos meus olhos com a mesma curiosidade de encantamento da filha que embalava em seu colo. Me senti um pouco nua. Seu olhar buscava entender o que havia e quem havia, debaixo daquele nariz vermelho, aquela maquiagem, aquela peruca. O que será que ela pensava? O que ela teria dito se seu olhar tivesse expressado em palavras o que sentia?
Algumas mães e pais, pelo contrário, já conhecem a gente muito bem. Nos encontramos várias vezes e já estivemos com eles em muitas situações e estados de ânimo. Esses por vezes fazem as honras de nos apresentar e nos enturmar com os pais que ainda não conhecemos.
Enquanto atendíamos uma criança, escutei certa vez uma mãe contar para a outra:
“Elas são doutoras de verdade, eu já vi.”
Internamente, eu achava graça porque, na verdade, nós não somos médicos. Somos artistas, formados em Artes Cênicas, Circo, Música, com especialização na linguagem do Palhaço. Não temos nenhuma ligação com a Medicina, buscamos realizar uma intervenção artística dentro dos hospitais e usamos a figura do médico quase como um disfarce, uma porta de entrada que permita nossa interação com o hospital, a equipe, os pacientes e seus acompanhantes.
Mas aquela mãe tinha tanta certeza do que dizia em sua conversa particular, que não me senti no direito de corrigi-la.
Existem também os pais que deixam suas crianças livres para fazerem com o palhaço o que quiserem. Não são raras as vezes que levamos chutes, pisões, empurrões, tapas, socos no nariz e beliscos. Não sei o que esses pais pensam quando incitam seus filhos dizendo:
“Vai filha, bate no palhaço!”
E depois riem disso.
É muito difícil contornar essa situação, a vontade é de tirar a máscara e dizer:
Ei! Eu sou um ser humano!
Nem sempre as pessoas se dão conta disso. Muitas vezes nos encontram no refeitório, na hora do almoço e perguntam:
“Ué, palhaço come?”
Ou crianças que dizem:
“Mãe, o palhaço é mulher!” e se surpreendem ao descobrirem que “o palhaço é de verdade…”.
Dra Guadalupe (Tereza Gontijo)
Dra Lola Brígida (Luciana Viacava)
Hospital do Grajaú – São Paulo
Maio de 2013