A noite é passada em claro, horas vão se sucedendo entre uma medicação e outra, ciclos de aerolin, retornos médicos, raio-x, exames, pulsão de veia para pegar acesso, mais aerolin, a madrugada chega, internação na UTI, espera, susto, amanhece o dia, uma hora de sono, café da manhã, fisioterapia, medicação, visita médica, visita da enfermagem, visita da nutrição, logística com filhos, uma no hospital, outro em casa, quem leva à escola, quem pode buscar, quem pode dar atenção aqui, lá, quem fica para dormir, quem sai para trabalhar…
São 9h da manhã, já viveram um mundo e ainda assim o tempo parece suspenso no ar. Almoço, banho, mais fisioterapia, pegar roupa em casa, “como é que se faz isso?”. São 15h30 e a família já nem sabe que dia é aquele, quando começou, quando vai acabar. A constatação é óbvia: aqui o tempo não passa.
Passaram-se dois dias e ela tem que deixar uma filha no hospital para ir dormir em casa com o outro filho, no dia seguinte levá-lo à escola e… seguir para trabalhar em outro hospital. Pela primeira vez, a palhaça deixa uma filha internada para atender outras crianças internadas. Segue pelo caminho sentindo o cansaço instaurado em todos os músculos de seu corpo, pensando se conseguirá fazer bem seu trabalho e sabendo que está por um fio. Na noite anterior, avisou ao seu parceiro de trabalho que talvez chorasse um pouquinho em seu ombro e ele, generoso, acolheu: “venha”.
Já trocados, palhaços, começam a trabalhar na UTI e o primeiro assunto que surge com a equipe é a filha internada. “Ela está bem, melhorando”, a palhaça conta, mas intimamente sabe que não tem calma realmente possível para o coração de uma mãe a não ser uma palavra chamada “alta”. A palhaça segue no assunto até onde consegue conter uma possível emoção. Logo entra outra enfermeira na salinha do café e, em boa hora, o assunto deriva para outra direção. Em instantes, estão dançando ao som de uma música de Ivete Sangalo, que está completando 50 anos, assim como essa colega que havia feito aniversário no dia anterior. Comemoram!
Na passagem de plantão, os palhaços são informados de um óbito que ocorrera alguns dias atrás, nos mesmos dias em que a palhaça enfrentava noites em claro com sua filha, num hospital do outro lado da cidade. A dupla de besteirologistas havia atendido a mãe dessa paciente na quinta-feira anterior, ela aflita, chorando, sua pequena estava sendo entubada. Dias depois, houve complicações e, naquela terça-feira, a menina não estava mais lá… A causa: pneumonia. A palhaça sente o corpo fraquejar, se esforça para não se perder em seu próprio medo de mãe, para não colar em si nenhuma identificação. Novamente sente o receio de não conseguir fazer seu trabalho naquele dia, “estou por um fio…”.
Mas, apesar de tudo, é possível prosseguir! Ela e seu parceiro seguem trabalhando, divertindo-se, encontrando amigos pelos corredores, fazendo suas palhaçadas e o dia segue bem. Leve.
Na pediatria em que trabalham, as plaquinhas de precaução de contato, gotículas e aerossóis multiplicaram-se, as mesmas plaquinhas que estão fixadas na porta do quarto da filha da palhaça. As infecções respiratórias estão por todos os lados. Aproximam-se do vidro de um dos quartos, veem uma mãe, seu bebê e aguardam até que sejam vistos por ela. Esperam que ela venha com ele até o vidro, pois só assim poderão atendê-los, devido às precauções. Ela os vê e traz a criança no colo, ainda distraída com algo em seu leito que chamava sua atenção. É quando chegam bem perto do vidro que o bebê, Eduardo, vê a dupla de besteirologistas. Fica com os olhos arregalados. Momento de suspensão. Será que vai chorar? Não!
Depois de alguns instantes, Eduardo começa a rir, exibindo seu simpático sorriso banguela! A cada movimento dos palhaços de aparecer e desaparecer no vidro da porta fechada, ele ri, se encanta, se surpreende e sorri de novo. Sua animação vai contagiando a todos e a dupla segue propondo o jogo. Dr. Mendonça começa a tocar seu violão e algo na variação do meu movimento, Dra. Guadalupe, faz Eduardo disparar em gargalhadas sonoras.
Na verdade, a palhaça não sabe identificar o gatilho que dispara tal reação, mas insiste no movimento que faz ele rir mais e mais… a mãe gargalha junto, os palhaços gargalham juntos e Eduardo ri… ri… ri! Como naqueles vídeos de bebês gargalhando que circulam na internet, ele dispara a mesma gargalhada: alta, gostosa, contagiante. Seu corpo se agita e ele parece não caber em si com tamanha excitação.
A dupla insiste nessa interação tanto quanto dá até irem se afastando deles, aos pouquinhos. Enquanto se despedem, de olhares conectados, a palhaça sente que poderia passar um fio de cabelo entre a sola de seus pés e o chão, pois está muito mais leve. Pensa consigo: “obrigada, Eduardo, obrigada! Você fez tudo valer a pena”.
Quando a dupla chega à Clínica Médica para realizar o atendimento na ala adulta, que ocorre naquele hospital, excepcionalmente, são gentilmente interpelados por seu Ari, acompanhante de uma das pacientes que eles vêm atendendo nos últimos dias. Ele se aproxima para dizer que talvez aquele não seja um bom dia para atendê-la, pois haviam recebido uma notícia não muito boa e teriam que permanecer mais tempo internados do que esperavam. Ari temia não serem bem recebidos. Os palhaços entendem perfeitamente sua solicitação e, antes dele ir embora, Dra. Guadalupe toca em seu ombro e pergunta: “E você? Como você está?”
É como acionar um botão proibido e a emoção surge instantaneamente em seu olhar. “Ah, não me faça essa pergunta, senão vou desaguar”, ele diz, titubeando entre ir ou ficar. A dupla o acolhe dizendo que ele pode falar se quiser, que pode desaguar com eles. De novo em seu íntimo, a palhaça lembra do que disse Dr. Mendonça no dia anterior: “venha, aqui você pode chorar”. E até pensa em contar o quanto se identifica com ele, sentindo retumbar em si mesma sentimentos iguais aos seus. Ari titubeia mais uma vez, mas fica firme e segue seu caminho. A palhaça faz igual.
No dia seguinte ela, agora como mãe, está de volta ao hospital onde sua filha está internada e espera receber alta naquele dia. Mas, pela manhã, recebe a notícia de que não será possível voltar para casa, que vão ficar ainda mais tempo no hospital. Mais do que gostariam. Lembra do seu Ari, dos seus olhos marejados, do desejo de ir embora sem poder sair, de tentar manter-se firme, mesmo querendo desaguar. Ela sente igual. Horas depois, sua filha faz um monte de palhaçadas e ela se percebe rindo da pequena. Lembra do bebê Eduardo e agradece em silêncio pelas crianças que fazem a palhaça sorrir.
No fim do dia, cansada, triste, irritada, sente brotarem as primeiras frases deste relatório e desagua em palavras seus sentimentos ambíguos como mãe-palhaça ao lado da filha que desenha, tranquila:
“O coração fica espremido,
O corpo vira um bagaço,
E a gente se entrega para vida
Sabendo que a dona
Não se doma no laço”
No dia seguinte, estão de volta ao conforto do lar, o mundo gira novamente sobre seu eixo, mas nada mais está no mesmo lugar.