Tinha acabado de chegar ao Hospital da Restauração quando a nutricionista perguntou se passaríamos pela UTI.
“Bia está sem querer comer”, disse a médica. “Vocês poderiam estimulá-la para ela se alimentar?”. O pedido seria atendido pela dupla de besteirologistas.
No camarim improvisado para a preparação dos palhaços, pensava nas estratégias para me conectar com a conhecida paciente. Digo conhecida porque Bia, criança de aproximadamente cinco anos, estava em seu quarto ano de internação. O leito no quarto andar do hospital era a sua casa.
Bia adorava brincar de não querer dividir suas coisas comigo, então pensei que este seria o caminho perfeito para atender à nutricionista. Cheguei ao leito e fui logo pedindo tudo o que tinha lá para mim.
– Não dou, é tudo meu, Marmelo!, disse a paciente sorrindo.
– Até esse cobertor é seu, Bia?
– Sim.
– E essa garrafinha de água, você pode me dar?
– Não, ganhei da minha mãe.
Olhei para o móvel ao lado da sua cama e vi o prato de comida e o copo de suco, que repousavam intocados.
– Comida! Eu quero, eu quero!, disse quase implorando.
– Não posso dar, Marmelo. É a minha comida.
– Como é a sua comida se você não está comendo?, perguntei com as mãos na cintura.
Bia, que tinha limitação de movimentar suas mãos, foi se erguendo devagarzinho do leito. Pegou cuidadosamente o prato e começou a comer. Em mim, um misto de alegria e missão cumprida. Por fora, eu seguia desejando a refeição de Bia a cada garfada. Só faltava o suco.
– Bia, já que você não vai tomar o suco, eu vou tomar…
– Não, Marmelo. Eu vou tomar.
Ela se virou lentamente, pegou o suco e, na tentativa de trazer para mais perto, o copo escorregou de suas mãos e caiu no chão. Eu não consegui disfarçar a preocupação, fiquei desconcertado. Naquele curto espaço de tempo, não sabia se brincava com a situação ou se chamava o serviço geral.
Bia, de forma sensível, percebeu minha alteração e, delicadamente, quase igual a uma pluma ao vento, disse:
– Calma, Marmelo… Eu sou assim mesmo.
Aquilo me tocou. Abri um sorriso de canto, soltei o ar e relaxei. Momento depois, deixei o quarto querendo me aceitar mais ainda e trazer para a consciência minhas fragilidades. Olhar com delicadeza para as minhas limitações e respeitá-las, assim como Bia fez com as suas limitações.
Obrigado, Bia, por esse encontro tão potente.