Numa segunda-feira fria, no Hospital do Mandaqui, em São Paulo, conhecemos um garoto de 11 anos, muito querido, que aqui vou chamar de João.
A primeira vez que encontramos com João foi na UTI. A primeira imagem que tive dele era a de um garoto muito assustado. Também, pudera! Ele estava com uma faixa em volta de sua cabeça e com muitos, muitos fios que ligavam seu corpo a uma máquina.
Sua mãe olhava com muita atenção ao que dizia a psicóloga naquele momento. No seu rosto, havia um sorriso congelado, embora de muita ternura para o pequeno João. O menino, de olhos estatelados, tentava entender o que se passava com ele.
Dr. Fritz e eu fomos chegando bem de mansinho, pé ante pé, sem fazer grandes movimentos. Também estávamos tentando entender o que se passava por ali. Pedimos permissão à psicóloga, que nos concedeu, falamos com a mãe, que sorriu, e tentamos algo com João, que… não nos deu bola.
A mãe tentou intervir e João… nem ligou! A psicóloga tentou e… não adiantou! A mãe, ainda com aquele sorriso carinhoso, olhou para João e disse:
– Dá oi para os palhaços, filho!
Foi aí que João nos olhou e… fechou os olhos! A mãe, sem graça, nos pediu desculpas. Deixamos a mãe tranquila e reforçamos que era segunda-feira e, às vezes, a gente também não está com muito papo na segunda, está tudo bem. Seguimos nosso caminho.
Quando já estávamos finalizando o dia, a psicóloga vem ao nosso encontro e nos diz, superfeliz:
– Gente, eu amei a interação que o João teve com vocês hoje lá na UTI!
Nós nos olhamos e pensamos: João? UTI? Interação? Será que estamos falando da mesma pessoa?
Ela então nos confirmou que sim e completou:
– João é autista e não interage com ninguém. Ele olhou para vocês, acho que é um começo!
Aqui, é preciso deixar um pouco Dra. Pamplona de lado e dar espaço à Gabi Zanola. Tenho dois sobrinhos autistas, eles são gêmeos e tem oito anos. Desde que foram diagnosticados com autismo, tenho olhado para esse assunto com outros olhos. Melhor dizendo: não que ser autista vá definir o que eles são, mas acredito que, por conta do autismo, eu passei a tentar olhar a sociedade com outros olhos.
Volto no hospital no outro dia e lá na UTI está João, agora com bem menos fios ligados a ele. João estava assistindo à Turma da Mônica pelo celular.
Começamos então a falar de Turma da Mônica e o garoto não tira os olhos do celular. Sua mãe, sempre muito gentil, tenta fazer com que o garoto preste atenção em nós, o que foi em vão. Falamos para ela que tudo bem ele ficar no celular.
Continuamos ali, até que eu comecei a cantar uma música da Mônica. Foi aí que João começou a olhar para nós. Entendi que o hiper foco, algo muito comum entre os autistas, era a Turma da Mônica.
Os dias foram passando, João foi para a enfermaria e todo dia era uma nova história da Turma da Mônica que nós tentávamos com ele, às vezes com sucesso, às vezes não, acontece.
Mas o que João gostava mesmo era de brincar de dar tchau. Como funcionava a brincadeira?
Atendíamos todas as crianças que estavam no quarto com ele e ficávamos tentando abrir uma interação com ele. No final, quando estávamos prontos para ir embora, fingíamos que saímos do quarto e, rapidamente, voltávamos para nos despedir. Às vezes, ficávamos nos despedindo por alguns longos minutos. Ele se divertia com isso. Tanto a repetição quanto a rotina também são importantes e comuns em alguns autistas.
João ficou no hospital durante umas três ou quatro semanas e nós fomos nos aprimorando em Turma da Mônica e em maneiras inusitadas de nos despedirmos. Até que veio a notícia:
– Hoje João terá alta!
Poxa! Que felicidade!!
– Hoje daremos um tchau bem dado para ele voltar para casa!
Para nossa surpresa, quando entramos no quarto do João e estávamos começando a iniciar a nossa sessão de despedidas como estávamos acostumados, o garoto diz:
– Quero pato!
“Quero pato?”, pensamos nós.
E repetiu:
– Quero pato!
Entendemos que o pato na verdade é a Frederica, a galinha de borracha do Dr. Fritz. Higienizamos a galinha e deixamos na mão de João, que começou a apertar sem parar.
Foi então que tive a ideia de tocar uma música na qual havia um momento determinado para apertar a galinha! E assim se fez, o garoto se mostrou um exímio tocador de galinha, que só apertava a bichinha nos momentos certos da música. A equipe se colocou na porta para ver e ouvir a canção, não acreditando que o menino estava interagindo conosco, besteirologistas, daquela forma. Fomos aos poucos saindo e nos despedindo do João e de sua doce mãe.
Voltei para casa pensando no caminho de interação que percorremos com esse menino, desde o primeiro dia na UTI, quando ele fechou os olhos, até o último dia, em que ele tocou e dançou com a gente.
Agradeço a você, João, por atravessar o meu caminho e por me permitir ver e pensar outras formas de relação com o mundo.
Um beijo com carinho,