A história seguinte provavelmente já foi vivida mais de uma vez por cada um dos palhaços que trabalham nos Doutores da Alegria. Bastaria mudar alguns detalhes, localizá-la em outro hospital, em uma outra época do ano, com pacientes com outro diagnóstico e lá estaria a repetida história. É que ela acontece sempre! E dessa fez não foi diferente.
Dr. Charlito e Dr. Zequim Bonito saíam de um dos setores da UTI do Hospital do Grajaú quando, no outro setor, um pai muito mal encarado andava de um lado para o outro. Seu olhar desviava do chão para o rodapé e do rodapé para o chão.
Como todos os pacientes daquele setor estavam dormindo naquela hora, e aquele homem não parecia querer acolher nada nem ninguém, simplesmente continuamos nosso caminho e saímos da UTI.
Na semana seguinte, mesmo cenário, mas dessa vez conseguimos identificar qual paciente ele acompanhava: uma menina pequena de 18 meses, conhecida nossa, cujo quadro, apesar de estável, parecia bastante grave. Evitamos o encontro mais uma vez. As semanas seguintes não foram diferentes.
É evidente que “cara de poucos amigos” é um julgamento nosso. A pessoa tem o direito de ter ou fazer a cara que bem entender. Às vezes, em uma situação como a que aquele pai enfrentava, aquela cara era a única opção de cara que lhe restara.
Até que um dia, depois de encerrado o trabalho, quando descíamos as escadas internas do hospital, sem o figurino e a maquiagem que nos caracterizam, percebemos a presença dele atrás de nós. Dr. Zequim Bonito (que agora era o ator Nereu Afonso) virou-se e, sem pestanejar, perguntou:
– Na UTI ainda?
– Ainda, ele balbuciou nos deixando ouvir pela primeira vez sua voz.
Nereu respondeu com uma banalidade tremenda, do tipo “puxa!, uma hora se resolve, né?”.
– É…, disse o homem. E seus caminhos se bifurcaram. Um saindo do hospital, outro ficando.
Na semana seguinte, aquele esboço de diálogo deu margem para nosso primeiro encontro com aquele homem, dessa vez como palhaços, na UTI. Perguntamos se podíamos entrar.
– Podem.
– A música incomoda?
– Não.
A filha permanecia entubada, e menos agitada do que outras vezes que a vimos sem o pai. O homem deu um beijo na filha, e dali não ergueu mais o rosto. Ficou colado junto à menina, fazendo-lhe um carinho com seu rosto sério. Quando vimos a lágrima escorrer no rosto do homem, nos afastamos. Sabíamos que a música ali, junto com todos os sentimentos que já lhe atravessavam o espírito, traria outras lágrimas ao homem. Nossa intervenção já estava de bom tamanho.
Na outra vez em que nos encontramos, ele estava no corredor conversando com outro pai. Passamos rápido com apenas um “oi” para não interromper. Andamos dois passos e demos meia-volta.
– Incomodo?, perguntou o Dr. Zequim Bonito.
– Incomoda. – respondeu, não o homem, mas o Dr. Charlito – Não está vendo os cavalheiros conversando, sua anta?
E Dr. Zequim responde a seu colega besteirologista, bem no meio dos dois homens:
– Foi justamente pra não incomodar que perguntei se eu incomodava. E por que vi que estavam conversando, perguntei se eu incomodava com um tom de voz mais alto do que o deles, para eles poderem ouvir o meu algo grau de educação ao perguntar se incomodava, porque se eu achasse que não incomodava eu já começava a falar sem ter a educação de perguntar primeiro se eu incomodava, entendeu?
Nessa altura, a conversa dos dois homens não existia mais. E, para nossa sorte, eles foram fisgados pelo absurdo de nosso diálogo e passaram a seguir os argumentos estapafúrdios que cada um de nós emitia.
Bom, as visitas seguintes foram cada vez mais conviviais apesar do estado da garota continuar preocupante. Continuamos absurdos em nossas intervenções porque aquilo parecia intrigar e interessar o homem. Depois dessas visitas, podemos dizer que mais um encontro improvável acabou se consumando.
E, como disse antes, isso não é novidade em nosso trabalho. O que talvez seja novidade é pensar que não foi exclusivamente nossa arte palhacesca que conseguiu “dobrar” aquela carranca.
O que nos aproximou foi talvez o fato de termos nos encontrado naquela escada, ele longe da UTI e nós como cidadãos comuns. Naqueles poucos segundos, estávamos todos munidos de nossas indisfarçáveis diferenças. Nós, sabendo que ele está atrelado ao hospital, à doença, e à esperança de cura de sua filha. E ele, sabendo que nós podíamos ir e vir ao hospital em virtude do simples fato de termos um horário de expediente.
Ali, naquele primeiro encontro na escada, éramos apenas seres humanos, atrapalhados apesar de não estarmos de palhaço, frágeis ao não saber muito o que se dizer face à gravidade da doença de outro ser humano, um ser humano que para nós é mais um paciente, e para aquele pai é um ente muito querido, talvez o mais querido de todos naquele momento: sua filha hospitalizada em estado grave.
Dr. Zequim Bonito (Nereu Afonso)
Hospital do Grajaú – São Paulo