Passar meses fora de casa internado dentro de um hospital, sem saber quando vai voltar pra sua cidade, tomando remédio todos os dias, deitado em uma cama, ligado a um monte de máquinas, levando furada de agulha, deve dar saudade do lar.
Saudade da simplicidade, do cheiro da cama, da poeira no chão, da toalha bailando no varal, do cheiro do pão assado pela manhã, dos brinquedos espalhados pelo chão, das outras crianças da rua…
Tem gente que sai para estudar, trabalhar, morar com outras pessoas ou sozinha, enfim, construir sua própria casa ou lar, que é quando a gente começa a ter um afeto por aquele cantinho.
Uma vez, eu, Dra. Nana, escutei alguém falando que quando estava sem sono, fechava os olhos e começava a lembrar da casa em que morou na infância, lembrava de todos os detalhes e o sono ia chegando.
Certa vez, atacada pela insônia, resolvi experimentar e… abri a porta da minha casa na Rua Francisco Bezerra, que tinha uma maçaneta quadrada e quente, porque a casa ficava para o poente.
Então olhei para a cerâmica marrom, o sofá com os braços de madeira talhada e arredondado nas pontas, a mesa de centro da sala – que, ao contrário, tinha bordas bem quadradas, o que a tornava um perigo para as crianças.
A estante com bibelôs de cerâmica, potes grandes de vidro, alguns livros de receita, uma televisão quadrada, uma radiola 3 em 1 de discos, fita k7 e CD, uma pilha de CDs e… zzzzzz. O sono me derrubou sem nem chegar na sala de jantar.
“A nossa casa tem muito de nós. E nós, ao sairmos de casa, levamos muito dela na memória ou até fisicamente mesmo, objetos se tornam amuletos quando resolvemos carregá-los para outro lugar”.
Muitas vezes, enfermarias se tornam a casa de algumas pessoas e elas trazem, além de roupas e produtos de uso pessoal, brinquedos que enfeitam janelas, prateleiras e deixam o lugar mais colorido.
Ao entrarmos na enfermaria de Thalys, eu e o Dr. Marmelo encontramos um dono de casa, ou melhor, dono de enfermeira muito educado. Ele sempre permite que a gente entre e nos aconchega junto ao seu leito acompanhado de sua mãe.
Conversa vai, conversa vem, enquanto ajudávamos Thalys na faxina do leito, descobrimos vários bichos que se acumulam quando a gente solta pum na cama e não balança o lençol, entre eles uma lagartixa. Quando a gente mostrou ao menino, ele logo reconheceu: Robertinha!
Não entendemos a euforia do garoto ao ver a lagartixa de plástico. Sua mãe explicou pra gente que na sua casa ele cria uma lagartixa e que se chama Robertinha. Então, resolvemos deixar o bicho com a criança, um pedacinho da sua casa, uma memória emotiva.
Na semana seguinte, ao voltarmos para a UTI, toda a equipe já conhecia Robertinha e só falava nela. Dias depois, Thalys foi para uma enfermaria vizinha à UTI, um apê só pra ele. Nesse lugar, a equipe do hospital, colocou uma plaquinha na porta de cada paciente com o nome e uma figura que representasse o gosto daquela criança.
Na porta de Thalys tinha uma placa desenhada com uma lagartixa. Ela própria: Robertinha.
Dra. Nana (Ana Flávia) e Dr. Marmelo (Marcelo Oliveira)