No hospital não dá para planejar o final de semana ou o passeio no parque.
Não tem sábado de pique-nique, algodão doce, pipoca, mãos sujas de terra. Não tem domingo de banho de mar, castelo de areia, raspa-raspa sabor chiclete, picolé de morango derretendo com o vento. Nem birra na hora de ir embora. Nem a mãe dizendo: “Se continuar chorando NUNCA MAIS vou trazer você de novo!”. E esse NUNCA MAIS já é o próximo fim de semana.
Chegando em casa não tem o apelo para o banho, nem berros porque a criança tirou a sunga cheia de areia na sala. Não tem a mãe que, logo depois do banho, já arrependida, enche o filho de beijo molhado, enquanto a lasanha esquenta no forno.
Ser mãe é carregar uma mochila pesada cheia de culpa. É passar o dia cuidando do filho e, quando ele dorme, olhar para ele e, com o coração apertado, achar que poderia ter feito muito mais. Ser mãe é gastar tempo olhando o filho para guardar cada detalhe e nunca mais esquecer.
Ser mãe é ser casa, trajeto, mapa, guia… e se perder no meio do caminho.
É pirar, pausar, (res)pirar. É se sentir culpada por estar feliz porque o filho dormiu e agora ela tem um tempo para fazer o que quiser. E esse “o que quiser” basicamente é tomar um banho mais demorado ouvindo sua playlist favorita, sentar no sofá e ler parte de um livro. É olhar o Instagram, ver as atrizes com corpos magros e prometer que semana que vem vai para academia. E nesse devaneio lembrar que se esqueceu de lavar a farda da escola e o uniforme do trabalho.
É também se dar conta de que já é 1h da madrugada e de que precisa dormir porque amanhã o despertador não perdoa. E pela manhã, com os olhos ainda pregados, sonhando em poder um dia acordar às 10h da manhã, ouve aquela vozinha de anjo: “Bom dia, mamãe!”, acompanhada de um sorriso e um pulo de quem passou a noite toda dormindo e está esbanjando disposição. “Bom dia, meu amor!”. E sorrir às 6h30 da manhã.
Nenhuma mãe tem um filho imaginando que ele vai precisar ficar no hospital. Trabalho no Doutores da Alegria há dez anos, tenho um filho de cinco. Aprendo diariamente com as mães que encontro e aprendo ainda mais com as crianças que, apesar do quadro da internação, são de uma serenidade e de uma fortaleza incríveis. No entanto, ao longo desses anos, me chama atenção o fato de ver muitas mães e pouquíssimos pais acompanhando seus filhos.
Essas mães passam o dia correndo e não esperam nada em troca. Buscam remédio, dão banho, comida, contam histórias… Essas mulheres que são leoas, donas do melhor colo, do melhor cheiro, da voz que conforta, que são porto seguro. Super Mães Maravilhas, que congelam seus poderes ao ver seus filhos e filhas sendo furados por uma injeção. Elas conseguem sustentar o aperto no peito e cortar as lágrimas pela metade.
Depois que me tornei mãe e conheci melhor meu avesso, descobri que temos um pote onde guardamos nossas dores e as sentimos até morrer. E morrer é essencial para nos conectar com nossa essência e voltarmos ainda mais fortes. E também descobri que além de órgãos vitais, temos um poço fundo, tipo barril, que fica entre o coração e o estômago onde armazenamos toda a chuva. Essa água serve para regar quando dói. Aí é tempestade e alaga. Também serve para chover fininho ao ver o filho sorrir brincando com formigas, cuidando de um soldadinho, compartilhando um brinquedo. Chove quando escuta: “Eu te amo você, mamãe!”.
Ser mãe é tomar um susto com a rapidez com que o filho cresce e que daqui a pouco ele vai ficar com vergonha dos seus beijos na porta da escola. Que aquele bebê que se alimentava de você vai ter um celular e vai ao cinema com os amigos. Meu Deus! Ele vai ter seu próprio cartão de débito!
Apesar de não planejar o final de semana quando se está no hospital, se sairmos um pouco da superfície, podemos até sentir o vento que entra pela janela, a árvore que dança, o passarinho que me fala sobre ser livre… Na rotina do trabalho, meus olhos são como lentes de uma câmera captando momentos.
Flagro a fragilidade e a poesia das mãos do bebê no rosto da mãe. Flagro a mãe que segura o saco de vômito com uma mão e com a outra o coração. Flagro uma criança brincando na cama enquanto a mãe cochila. Flagro a mãe com a mão na cabeça, mordendo os lábios e prendendo o oceano com as pálpebras. Flagro a mãe cantando hinos de louvor e deixando o quarto leve. O cafuné na cabeça. O cheirinho de colônia passada nos cabelos repartidos ao meio. Flagro calcinhas estendidas no banheiro. Mães descabeladas. Flagro mãe passando batom depois do banho. Flagro mãe chorando desesperada pedindo pra morrer no lugar do filho. Flagro a iminência da vida. Flagro criança sem mãe nem pai, acompanhada de um tutor de abrigo. Flagro o brilho nos olhos do casal agarrado ao filho na urgência de amar. Flagro a avó fazendo besourinho enquanto rende a mãe que foi trabalhar ou descansar. Flagro a alegria da criança que sorri quando nos vê. A cara de estranhamento de algumas pessoas ao ver palhaço no hospital.
Hoje sou cada uma dessas mães. Me flagro ao avesso, fotografando, eternizando na memória e tatuando nos poros todos esses instantes.