Yasmin estava na UTI. Ela tem 10 anos. Crises convulsivas a trouxeram para o hospital. Além disso, a presença de um “déficit cognitivo” nos foi informada pela equipe médica.
– E esse “déficit” implica alguma dificuldade de interação?, perguntamos.
– No quadro atual, talvez.
Foi com esses dados que nos aproximamos do quarto da UTI onde a menina se encontrava. Aparecemos na porta. Ela nos olhou por um bom tempo sem esboçar reação alguma. De repente, virou-se para alguém que estava fora de nosso campo de visão e soltou o primeiro dos “Não tô entendendo nada”, seguido de um risinho.
– São os palhaços, Yasmin, disse a voz cujo dono ainda permanecia escondido para nós.
– Palhaços, pai?
– É, filha.
– Não tô entendendo nada!, disse a menina gargalhando.
Então, batemos em uma porta invisível, pedindo permissão para entrar. Toc toc toc. O som, entretanto, era bem real.
– Vixi. Não tô entendendo nada mesmo. Hahah!
– Eu vou abrir a porta para eles, disse o pai, finalmente revelando-nos seu semblante.
O homem, jovem e disposto, abriu a porta invisível e nos disse para entrar apontando o capacho (também invisível) onde deveríamos limpar os pés. Pronto, o jogo com o pai estava estabelecido e, por intermédio dele, era lançado à menina.
A limpeza dos pés no capacho invisível transformou-se, aos poucos, em um sapateado (bem real) executado pela Dra. Manela. A empolgação com a dança gerava chutes e pisões (bem reais também) em Dr. Zequim.
– Eita!, disse o homem.
– Eita!, repetiu Yasmin, deixando pela primeira vez de nos agraciar com a única e exclusiva frase “Não tô entendendo nada”.
– Ai, ai, ai, dizia Zequim a cada chute e pisão recebidos.
O jogo, nesse primeiro dia, se desenrolou todo ali, na fronteira da porta.
Yasmin passou as três semanas seguintes no hospital. Outras frases foram se adicionando ao tradicional bordão “Não tô entendendo nada”, que era seguido de uma risada. Nos últimos encontros, sua fala era salpicada de “Oi, Manela”, “Oi, Zequim” e da inevitável “Tava com saudades de vocês”, seguida por um abraço de quebrar os (nossos) ossos.
Yasmin se transformou em uma espécie de anfitriã do 3º andar, nos apresentando a todos os novos pacientes do setor.
Em nossa última visita, lá estava seu pai novamente. Dessa vez, encontravam-se no corredor, junto com outras crianças. A disposição e capacidade para jogar era tanta naquele jovem homem que, em um determinado momento, foi ele quem conduziu a situação palhacesca que havíamos lançado. Ele se transformou em “motorista de Uber” ao dirigir habilmente uma cadeira de rodas vazia; ele mostrou estilosamente como palhaços devem caminhar e se vestir, e seu discurso era tão farsesco que, antes de terminar as frases, já punha todo mundo a rir!
Ficamos ali, dando apoio e testemunhando tamanha inteligência cômica. Yasmin, do seu jeito, acompanhava o pai em sua performance. Entre pai e filha, um orgulho mútuo.
No final de tudo, de uma coisa tivemos certeza: para aquela família, o “déficit cognitivo” deixava, ao menos naquele momento, de se traduzir por “dificuldade de interação”.