Conheço Vera Abbud, a palhaça Emily, há 21 anos. Fizemos juntos um espetáculo chamado Jogando no Quintal. Lembro do dia em que a conheci na casa de César Gouveia, antigo besteirologista, Dr. Cisar Parker, em um ensaio. Eu era ainda um jovem palhaço, ela já era a primeira palhaça dos Doutores da Alegria. Mesmo nunca tendo visto ela em cena, esse ensaio fez meu queixo cair, por um simples motivo: estado de presença. Quando Emily chegava, era impossível não colar nela! Ela está ali viva, nada é feito ou elaborado, tudo acontece no momento que deve acontecer.
Desse dia em diante tive muitas aulas maravilhosas sobre palhaçaria com ela, mesmo que ela não soubesse. Convivemos assim por mais de 10 anos, eu sempre indo assistir aos outros espetáculos das outras companhias dela, fã mesmo, desses de carteirinha. Por um período não trabalhamos juntos, até que este ano nos encontramos novamente no Hospital do Grajaú. E mais uma vez, logo de início foi impressionante ver seu estado de presença.
O universo digital é um campo bastante limitador para o palhaço. Os movimentos e as mágicas se tornam limitadas, quando a gente inventa de cantar em dupla, a música vira uma massa sonora inaudível, a conexão é um desafio. Mas o digital possibilita também muitas experiências lúdicas. Por exemplo: os aplicativos transformam os palhaços no que eles imaginarem, seja um super-herói, uma laranja, uma cenoura ou uma ema. Mas não basta que o palhaço diga à criança que é um super-herói. As perguntas chegam: por que ele está lá? Como chegou? Para que veio? Nessas questões moram a presença. Tudo vem do momento.
Visitamos um garotinho de 2 para 3 anos de idade, aprendendo as palavras e as gestualidades. Ele estava amuado por conta do seu estado de saúde. Sua mãe, muito feliz com a nossa presença, insistia para que ele fizesse coisas que havia aprendido. Talvez por sentir orgulho do aprendizado, talvez por querer que ficássemos tão felizes como ela estava.
Emily, percebendo o estado em que se encontrava a criança, pegou o violão e começou a tocar uma música mais tranquila. A mãe ainda insistiu algumas vezes para que o menino mandasse beijo ou desse risada, mas ele só queria contemplar, ficar quieto vendo e escutando os palhaços. A mãe também acabou acalmando: ela também precisava contemplar, estar ali, sem mais. Eu também contemplei, minha parceira e a mudança de estado, tanto da criança, como da mãe.
Tenho um ano inteiro para aprender com a minha nova/velha parceira, um reencontro que alimenta o coração, e só tenho a agradecer a oportunidade, presencial ou virtual, o que importa é aproveitar esse tempo.