“Fora de campo” é uma expressão que decidi usar para exemplificar um dos casos vividos esse mês no Hospital M’boi Mirim, em São Paulo. À primeira vista, é possível que a expressão nos remeta ao jargão esportivo. Se pensarmos no futebol, por exemplo, podemos imaginar a bola fora de campo, um jogador fora de campo, a torcida fora de campo.
Em todos esses exemplos, aquilo que está fora de campo não está apto a participar diretamente da decisão dos acontecimentos ou, em poucas palavras, não está em jogo.
Mas tem outro conceito de “fora de campo” que nos será mais útil para contar o que aconteceu no hospital. É a noção utilizada pelo cinema. Nos filmes, “fora de campo” é o que não é visível aos olhos do espectador, é o que não aparece em seu campo de visão. É o que não está na tela.
No cinema, ao contrário do esporte, muitas vezes aquilo que não está na tela está de fato em jogo e contribui para o avanço da trama tanto quanto o que aparece na tela.
Lembrem-se do “tam-tam, tam-tam” do filme Tubarão.
A imagem da tela poderia ser a de uma praia tranquila, mas a simples evocação das notas do contrabaixo já fazia com que sentíssemos a presença do monstruoso peixe, mesmo ele ainda não estando na imagem!
Lembrem também dos filmes policiais, daquelas cenas clássicas onde um detetive particular persegue um bandido que se escondeu em um galpão escuro e abandonado… De repente, passamos a acompanhar a cena apenas do ponto de vista do detetive e o bandido não está mais em nosso campo de visão. Ele está fora de campo, escondido do detetive e de nós!
E é justamente essa sua ausência que faz o suspense aumentar. Nessa situação, qualquer som é suficiente para gelar nosso coração, mesmo com o bandido fora de campo.
E aí vocês perguntam: o que isso tudo tem a ver com a Pediatria do M’boi Mirim?
Tudo, eu responderia. Ou, para ser mais modesto, eu diria que a noção do “fora de campo” foi muito bem-vinda quando tentávamos estabelecer uma relação com uma garota de 4 anos.
Deitada sob os lençóis, ela já tinha deixado claro que não queria nos ver. Bem antes de nos aproximarmos, a menina já pedira à mãe para fechar a cortina. A mãe atendeu à menina e fechou a cortina quase que por completo. Elas ficaram do lado de dentro e nós (Dra. Manela e Dr. Zequim) do lado de fora.
O leito ficava no fundo do quarto, encostado na janela. E foi justamente através do reflexo da janela que avistamos a menina deitada em sua cama. Para a menina, o único elemento perceptível de nossas presenças era, naquele momento, o som de nossas vozes.
De resto, nós estávamos fora de seu campo de visão. Continuamos então explorando nossa fala e fragmentos de música.
Monitorávamos sua reação pelo reflexo da janela.
Ela largou a chupeta e se sentou. Algo havia lhe incitado a curiosidade. Apostamos nessa pista e ousamos deslizar uma de nossas mãos pelo curto espaço que restava entre a cortina e a janela.
A curiosidade aumentou. Colocamos outra mão. Ela hesitou. Então tiramos uma das mãos. Ela pareceu se decepcionar. Voltamos com a segunda mão. E também com a terceira.
E finalmente com quatro mãos invadindo suavemente seu espaço privado. Uma dança entre as mãos se insinuou.
De fora, acompanhávamos pelo reflexo o que se passava dentro. A menina olhava para sua mãe como se pedisse autorização para gostar, ou como se dissesse: “mãe, você está vendo o que eu estou vendo?”.
De repente, um de nossos pés apareceu embaixo da cortina. A menina se inclinou para vê-lo. A essa altura, o “fora de campo” já era parcial, mas ainda necessário para manter a confiança e o interesse da menina. Entoamos uma música. Mais pés surgiram por baixo da cortina. Um sapateado foi tomando forma, um pouco atrapalhado e pisoteado no início, mas cadenciado no final.
A menina bateu palmas acompanhando o ritmo dos passos.
Ao final do sapateado, nossos pés, novamente atrapalhados e pisoteados, foram se retirando. Nossas mãos fazem tchau. Deixamos o “boxe” sem sequer ter entrado nele de corpo inteiro. Foi uma intervenção realizada tão-somente com nossos pés, mãos e vozes. Mais nada.
Seria mais bonito dizer que ela nos acenou um “tchau” em resposta, mas, se não me engano, ela simplesmente colocou a chupeta na boca e voltou à posição deitada. A mãe voltou às palavras cruzadas.
Partimos.
Para elas, agora estávamos definitivamente “fora de campo”. Com um pouco de sorte, habitaremos suas memórias durante um tempo. Talvez nem isso. Mas não importa. O que conta é o que aconteceu no aqui e agora do quarto: nossa aceitação da resistência da menina para somente em seguida elaborarmos uma resposta a essa mesma resistência.
Uma resposta enviesada, indireta, que sai de campo para que o jogo entre em campo indiretamente, com sutileza, para daí avançar e, quem sabe, emocionar.