Bom, o coronavírus está aí e não há como fugir do assunto, a ameaça faz parte do cotidiano do planeta. Longe da atuação dos hospitais neste período, relembro uma história que aconteceu conosco no Instituto de Tratamento do Câncer Infantil em março.
Uma par de máscaras e uma toca
No Itaci, o uso de máscaras, mesmo em período sem epidemia, é muito mais intenso do que nos demais hospitais em que atuamos. É assim que, mesclada ao nosso nariz de palhaço, a máscara dá as caras (ou melhor, esconde as caras) em nossas atuações do TMO, da UTI e da Semi-Intensiva.
Ali, há muitas crianças que nos ouvem sem sequer conhecer o formato de nossas bocas, queixos e bochechas. Essa aparente limitação gera recursos inusitados. Por exemplo:
Dr. Zequim tem uma toca, uma espécie de gorrinho, que, ao ser levada à mão, se transforma em uma marionete. Isso mesmo, uma toca comum, aliás muito parecida com as tocas que as crianças em tratamento oncológico utilizam. Essa toca, ao ser manipulada por dentro com a pressão dos dedos se transforma em um boneco composto apenas de uma enorme boca e de um par de olhos. Sueli, de 7 anos, internada na ala Semi-Intensiva, não hesitou um segundo em travar um longo diálogo com o Hamilton (que é o nome da toca-boneco).
O mais curioso é que a “mágica” da transformação foi feita a olhos vistos. A menina viu a toca ser retirada da cabeça do palhaço e se transformar em uma forma viva, ali, na sua frente, e isso bastou para que o blablablá se estabelecesse. O papo foi longo e, ao final de um longo bocejo do Hamilton, a menina entendendo que era hora do boneco se retirar, permitiu que ele voltasse à cabeça do palhaço e retomasse sua forma e função de toca.
O remédio parceiro
Outro caso, de intimidade partilhada, por assim dizer, aconteceu na enfermaria. Lara é uma adolescente de 16 anos, muito expansiva e comunicativa. Percebemos que seu celular estampava a foto de um rapaz com idade próxima da sua. Dra. Pororoca, sem pudor algum, já foi apontando a foto e perguntando:
– É seu crush?
– É o Matheus, respondeu a menina.
– Tá, esse é o nome dele, mas eu perguntei se ele é o seu crush.
Lara abriu um sorriso e se preparava para a confidência quando, de repente, sua mãe entra no quarto. Zequim, percebendo o embaraço, pôs-se a disfarçar:
– Bem, então, nós, como médicos besteirologistas, achamos bom você continuar com essa medicação…
– Que medicação?, pergunta a mãe, já intuindo alguma maracutaia.
– Matheusolite 3 vezes ao dia, diz Pororoca.
– Que medicação é essa, Lara, que esses doutores estão te receitando?
– Ih, mãe, é uma medicação sem contraindicação. Se não me fizer mal, eu posso tomar por um tempão.
– Sei, Matheusolite…, ponderou a desconfiada mãe.
Dr. Zequim, querendo limpar a barra, solta essa:
– Pode ser o Gustavodril também, caso ela não se adapte ao Matheusolite.
– Ele é bem bonitinho…, completa Pororoca.
– Remédio bonitinho?, interrompe a mãe.
– Ele é bem eficiente, eu quis dizer!
A essa altura, a mãe já tinha entendido a tramoia de cabo a rabo e, então, acentuou seu lado detetive:
– Matheusolite ou Gustavodril, que nomes estranhos têm esses remédios, não é?
– Você achou, mãe?
– Achei, eles são genéricos?
– Imagina, mãe.
Pra coisa não desandar mais, Pororoca tem a genial ideia de perguntar para a mãe se ela toma alguma medicação desse tipo. A mãe abre um sorriso. Pororoca insiste e pergunta o nome do remédio utilizado pela mãe. A mãe diz que não se lembra. E Lara arremata: “Ela não lembra porque ela toma um bocado”.
Todo mundo cai na gargalhada e nós, besteirologistas, estimando que naquele quarto todos estavam bem medicado, fomos embora… direto para a farmácia mais próxima, em busca da cura para nossos males dessa ordem, porque em tempos de Covid-19 é bom ter alguém, não muito perto, mas que possa ser parceiro.
Esperamos, como literalmente todo mundo espera, que essa crise sanitária passe rápido. Tomara que em breve possamos estar de volta ao hospital.