O Instituto da Criança tem uma dinâmica diferente dos outros hospitais que atuamos. Enquanto nos outros temos a sazonalidade das doenças, um período de distúrbios intestinais e outro de problemas pulmonares, no ICr temos uma gama de processos que desconhecemos.
Nos outros hospitais o mais impactante é a situação social das crianças, no ICr é a gravidade das doenças. Muitas vezes não sabemos avaliar, ficamos com muitas dúvidas sobre o estado geral delas e às vezes, por não ter informação suficiente, subestimamos seu estado. Mas neste mês tivemos boas surpresas e quero contar algumas delas.
Um olhar diz muita coisa
O B. fica sempre na cama, com movimentos reduzidos. Não é muito reativo, mexe os olhos, mas não fala. Ele tem uma deformação na coluna e uma traqueostomia.
Já tínhamos entrado em seu quarto antes, mas por conta de um procedimento, apenas fizemos algumas bolhas de sabão e saímos. No outro dia estava dormindo. No terceiro dia, eu e Dr. Dus’Cuais entramos e ele começou a olhar para o violão.
– Quer uma música?, pergunto.
Ele faz um “não” com a cabeça. Tiro o violão da frente e ele olha para um bolso. Mostro o que está no bolso e ele faz outro não. Olha para outro bolso. Mostro o que tem lá. Não! B. olha de novo para o bolso e depois para o teto, repetidas vezes. Entendo que são as bolhas.
Quando as tiro do bolso, ele abre um sorriso. Faz “sim” com a cabeça. Assim que soltamos bolhas, seus braços, lentamente, levantam para tentar agarrar algumas, com certa descoordenação. Ao pegar umas delas, abre um sorriso inesperado.
Para mim foi tudo inesperado, pois naquele momento se revelou que ele tinha plena cognição, que se comunica, que se mexe. Da nossa primeira avaliação, bem equivocada, ele deu um salto.
Pisca pra ela!
Na UTI outra surpresa. Entramos e uma mãe nos chamou:
– Vem ver a G.! Toca pra ela. Ela adora música.
A menina estava imóvel, com os olhos prostrados. Ficamos na dúvida se estava sedada. Tocamos um pouco, a G. se contorceu e virou para o lado da mãe.
– É dor. Mas ela adora música, né filha? Pode continuar.
Continuamos. E a menina permaneceu com os olhos fixados em nós. A mãe de novo:
– Fala, G., que você gostou. Se você gostou pisca pra eles.
E a menina, que até então não tinha reagido, nos olhou e piscou pra gente.
– Pisca você pra ela, ela entende!, pediu a mãe.
Piscamos. Ela novamente piscou de volta. Demos tchau e nova piscadinha. Surpreendente de novo. O que parecia uma mãe querendo palhaços mais que a filha, pois a princípio a G. não parecia consciente, era uma mãe extremamente atenta com a filha.
Uma palavra inesperada
O outro é o A., que tem uma cirurgia enorme na cabeça. E uma mãe e uma vó muito carinhosas, espetaculares e presentes. Da primeira vez, não parecia que ele seria tão reativo, mas a vó pediu para tocarmos, pois antes de adoecer o menino tocava violino.
Quando ouviu a música, seus olhos arregalaram e um sorriso torto saiu.
Aos poucos, os assuntos foram aumentando. Ele adora Star Wars, Toy Story e seu quarto é cheio de bonecos dessas duas histórias. Dr. Dus’Cuais fez aparecer e desaparecer um monte de coisa no quarto e o A. fez cara de surpresa, abriu a boca e colocou a mão na frente, numa reação sincera de espanto. Adorou a mágica.
Em nosso último encontro, numa brincadeira entre os palhaços, perguntei se o Dr. Sandoval estava tirando uma com a minha cara. E ele, pela primeira vez, falou bem claramente, em apoio ao Sandoval:
– Não!
Bate-papo
E por fim a J., que é uma menina que não vê.
No quarto dela sempre conversamos muito e é das coisas mais interessantes conversar com crianças seguindo seu raciocínio. O assunto era Deus. Algo como:
– Quem fez você tão bonita?, perguntamos.
– Meu pai e minha mãe.
– E quem será que me fez?
– Ora, foi Deus!
– E quem será que fez Deus? O pais Deus e a mães Deus?
– Claro que não! Deus fez ele mesmo!
– Mas como se ele não existia?
– Deus fez ele antes de ele existir, oras!
Estamos tentando entender até hoje.
Vera Abbud, mais conhecida como Dra. Emily, escreve do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas, em São Paulo.