Ana estava sentada na recepção jogando Candy Fever no celular enquanto esperava ser chamada pela equipe de acolhimento do hospital. Parecia estar no nível do jogo em que os dedos no aparelho deslizam como se soubessem cada estratégia para continuar no Top 1 da competição.
Naquele momento, tirei os olhos dos artistas que estavam esbanjando músicas juninas – do tempo da vovó – para os idosos do HEER (Hospital Estadual Eduardo Rabello) que brincavam de ser os pares das grandes quadrilhas de rua.
Era bonito de ver, mas fiquei focado na senhora Ana que não estava naquela troca junina. Estava focada e habilidosa no jogo, percebi que era uma partida bem importante para ela.
Quando conseguia juntar os trios coloridos semelhantes, de maneira que capturasse uma grande quantia de pontos, estrelas ou bônus, o jogo brilhava com fogos de vitória com mensagens em inglês.
Acreditei que ela soubesse o significado das palavras, porque se via um sorriso no rosto e uma sacudida nas mãos que seguravam o aparelho celular.
O cortejo junino do Plateias Hospitalares de Doutores da Alegria passou por ela duas vezes e, logo, a Ana foi chamada por uma das pessoas da equipe médica.
Ela imediatamente pausou o jogo, levantou o celular, clicou na imagem grande de uma máquina fotográfica na tela e fotografou os artistas que estavam de costas, relembrando memórias e criando lembranças que as festas regionais nos recordam em todos os meses de junho.
O cortejo seguiu para os espaços possíveis daqueles corredores e enfermarias do hospital. Muita diversão, jogos que incluíam as reações e emoções de cada idoso que estava ali por motivos particulares.
Vi choro de emoção, vi palmas e cantorias de senhores acamados quando a sanfona tocava aquela música do coração.
Eu vi até os pés de uma senhora acamada seguirem os ritmos que eram cantados, parecia que lembravam aquelas apresentações nos campos empoeirados das comunidades em que viveu sua adolescência.
Logo que entramos no penúltimo quarto, avistei a Ana no leito 8 do quarto das Camélias. Ela estava debruçada em um homem mais idoso que ela, que mais parecia ser seu pai. Um ser humano negro que aparentava ser muito frágil, como se aquele abraço o quebraria sem o menor esforço a qualquer momento.
Ela parou de abraçar o senhor e pude perceber que aquela Ana, que antes tinha um semblante de controle do jogo na recepção, estava com os olhos inchados. Um semblante pesado, uma aparência de dor pela anunciada perda de um amor significativo e forte.
Naquele momento eu a encarei e senti a sua dor. Vi que uma lágrima corria dos olhos dela e acho que ela viu também que a emoção tinha tomado conta dos meus olhos. Fim do jogo para ela.
Fim do cortejo junino para nós. Foi tocante ouvir os comentários dos artistas sobre as conexões que fizeram com as pessoas na fila de espera, nos corredores com as enfermeiras e com os profissionais da saúde…
Vi cada artista tirar a maquiagem, tirar os figurinos e se transformarem em cariocas da gema e, então, seguirmos para a van.
E foi no trajeto de saída, ainda com os instrumentos e equipamentos nas mãos, que a Ana passou por mim outra vez acompanhada por um capelão e um enfermeiro. Voltavam do necrotério.
Durante o retorno tentei negar o sentimento de tristeza, foi difícil. Até lembrar que a arte que propusemos oferecer serve também como acolhimento nos momentos de dor.
A atividade artística acaba preenchendo os ambientes e manejando os sentimentos de alegria e de dor que não rola descrever. A arte sabe como e onde mexer no coração de cada um.