As crianças no Brasil são invisíveis. Muito se fala sobre elas, mas pouco se fala com elas. Que tal aproveitar uma data absolutamente comercial para pensarmos na criança para além de consumidoras para vê-las como cidadãos de direitos?
Em tempos de confinamento, em que estamos refletindo sobre nossas vidas, diante de tanta imprevisibilidade, sugiro que aproveitemos o momento para valorizar aquilo que é verdadeiramente relevante. Para isso, é importante recuperar algo que está esquecido por aqui.
Ano passado, em 20 de novembro, fez trinta anos que foi promulgada a Convenção sobre os Direitos da Criança, em 1989, como um instrumento de direitos humanos, ratificado por 196 países, entre eles o Brasil. Entrou em vigor em 2 de setembro de 1990.
Foi neste momento que os adultos do mundo prometeram que não tomariam nenhuma decisão que afetasse as crianças sem consultá-las.
Embora quase duzentos países tenham proclamado que a infância tem direito a cuidado e assistência especiais necessários ao seu bem-estar, trinta anos se passaram e milhões de crianças seguem pelo mundo sem direito à saúde, moradia, alimentação e educação, sofrendo maus tratos ou exploração, inclusive sexual, e negligências de toda ordem. Foi uma grande promessa que ainda não se concretizou.
Em seus 54 artigos, a Convenção busca assegurar que todas as crianças tenham direito de desenvolver sua personalidade, assim como sua capacidade mental e física até ao máximo das suas possibilidades. Para serem felizes, não para serem algo que os adultos escolheram previamente.
É hora de cuidarmos da infância e lutar pelos seus direitos.
É hora de aprendermos também que as crianças são capazes de formular seus próprios pontos de vista. Têm direito de expressar suas opiniões livremente e cabe a nós, adultos, ter escuta porque pode ser uma excelente oportunidade de encontro potente entre pessoas diferentes, que não são mais ou menos que o outro. Só não são como o outro e nem o outro.
Também é importante lembrar que muitas pessoas e países estão defendendo os direitos das crianças.
Destaco o pedagogo e cartunista italiano Francesco Tonucci que, em 1991, criou a Cidade das Crianças, em Fano, na região de Le Marche, sua terra natal. A imagem que retrata a cidade traz crianças brincando na rua junto à placa “desculpem o transtorno, estamos brincando”.
Desde o surgimento da proposta, Fano tem se tornado referência mundial e serviu de inspiração para diversas cidades do mundo, como Rosário (Argentina) e Pontevedra (Espanha).
Suas ideias se transformaram em propostas apresentadas em congressos mundiais das Cidades Educadoras, que lutam por assegurar os direitos das crianças de usufruir das cidades em que habitam. Defendem o direito que as crianças têm de brincar, não como ocupação de tempo, mas porque precisam para entender o mundo.
Ao brincarem livremente nas cidades, restituem uma cidade melhor para todos.
Nessas cidades, as crianças participam da gestão e da tomada de decisões, atuando ativamente nas câmaras de vereadores (ou nome similar), com encontros e debates sistemáticos com prefeitos (alcaides), encaminham e acompanham projetos, não apenas os destinados à infância. As crianças têm ideias, apresentam projetos, propõem soluções para o que consideram relevantes nas cidades, que são pensadas para todos. Nessas cidades, as crianças são cidadãs de verdade e respeitadas como tal.
Que diferença do Brasil! Por aqui, em grande parte das cidades, crianças não estão nas ruas, porque este espaço é considerado perigoso. Só transitam livremente as que estão em condição de vulnerabilidade.
Como as crianças não podem circular e ficar nas ruas, em função dos riscos que correm, não se pensa em melhorar as cidades. Ao contrário, escolhe-se aprisioná-las em espaços considerados seguros e a cada dia aumenta o número de horas de permanência delas em espaço educativo (antes da pandemia), mostrando que por aqui crianças não são pessoas, são estudantes. E a situação piora na medida em que a escolaridade avança.
Então, vamos aproveitar que este ano temos eleições municipais, levar ideias e exigir dos candidatos propostas que respeitem as crianças não apenas no que diz respeito aos cuidados necessários para que tenham uma infância digna, mas acima de tudo, que sejam vistas como cidadãs. A jovem ativista sueca já está fazendo isso, convocando jovens para lutar por mudanças climáticas. Seu poder de mobilização mundial tem provado que é capaz de atuar sem a mediação de adultos, porque eles estão falhando no cuidado com o seu planeta.
Vamos lutar para que todo dia seja dia da criança, e não apenas um, que se limita ao consumo.
Vamos aproveitar o tal Dia da Criança fazendo algo com elas, respeitando seus direitos e apresentando a elas este importante instrumento universal que é a Convenção sobre os Direitos das Crianças.
Um ótimo caminho é pela literatura infantil. Sugiro uma saída cuidadosa e segura a uma livraria infantil de bairro. Procure a mais perto da sua casa, caso haja, porque assim fortalecemos essas pessoas corajosas que seguem acreditando no valor do encantamento pela leitura que os livros oferecem aos pequenos. Lá tem um mundo de viagens, descobertas e aventuras que toda criança deveria ter direito de conhecer.
Sugiro que desfrute o espaço da livraria não apenas para consumir, mas para mergulhar e viver a experiência de ficar o tempo que a criança quiser, acessando os livros que escolher, e não no tempo imposto pelo adulto. Se puder, saia de lá com o livro “Eu tenho o direito de ser criança”, de Alain Serres, da Editora Pequena Zahar. Este livro apresenta a Convenção sobre os Direitos da Criança em linguagem literária. Depois uma boa conversa que sirva para o adulto aprender o que pensam as crianças.
E agora, vamos mudar esta história de Dia das Crianças?